quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Antonio Prata

Folha de São Paulo

A vida dos bares
Eles já não batem mais as botas como costumava acontecer no tão próximo e já longínquo século 20
Outro dia, passando em frente ao Filial, ali na Vila Madalena, me dei conta de uma consequência ainda pouco comentada destes 20 anos de estabilidade econômica: os bares não fecham mais. Não, não falo aqui da "hora em que todos os bares se fecham e todas as virtudes se negam", como escreveu Drummond, a hora em que garçons merecidamente mal-humorados botam as cadeiras em cima das mesas e jogam baldes d'água sobre os pés dos últimos bebuns, que, pedindo clemência, implorando por compaixão, citando as convenções de Haia, de Genebra, de Underberg, imploram por uma saideira, como se mais um copo pudesse preencher o vazio cósmico que envolve os fígados e corações lá pelas três da madrugada. Digo é que os bares não batem mais as botas, não fecham definitivamente as portas, não passam o ponto como costumava acontecer no tão próximo e já longínquo século 20.
Não sei se a culpa era da inflação, da recessão, do Plano Sarney, do Plano Funaro, da falta de plano, do SNI ou do FMI, sei é que bar era um negócio temporário, um namoro rápido e intenso que terminava depois de uns anos e ficava só na lembrança dos envolvidos, como uma viagem de Réveillon.
É verdade que não vivi de fato essa fase seminômade da boemia. Ou melhor, vivi por tabela, criancinha, comendo frango a passarinho com Fanta Uva ao lado do meu pai, nas sextas-feiras em que minha irmã e eu íamos dormir em sua casa e, antes, passávamos por um botequim. Dessa época, guardo (boas) lembranças do Pirandello, do Vou Vivendo, do Nabuco, do Royal. Mas já então ouvia os adultos elogiando outros defuntos como Baiuca, Jogral, Ela, Cravo e Canela, o João Sebastião Bar, afirmando que aquilo sim, aquilo sim era bar.
Pense no Rio: por lá, também, os botecos morriam na flor da idade, como sambistas tísicos e amantes suicidas. Onde estão o Antonio's, em que Vinicius tomava suas banheiras de gim tônica? Cadê o Luna Bar e o Real Astoria, em cujas mesas se reuniam os não tão inocentes do Leblon? Muertitos de la Silva -diria um argentino fluente em portuñol.
Pois eis então que, outro dia, neste país em que vamos do tapume à demolição antes da hora do almoço, passo em frente ao Filial e o que vejo em seu lugar? Susto: ele mesmo! Quantos anos terá? Vinte? E resiste! Foi lá que lancei meu primeiro livro, já se vai mais de uma década. E o Ó do Borogodó, onde praticamente dei meus primeiros beijos, que fim levou? Nenhum: continua lotado, ironicamente ensanduichado entre os vivíssimos do Conniff e os finados do cemitério. E o Balcão? Virou igreja evangélica? Bufê infantil? Pet shop? Nada, meus amigos, segue firme e forte, as conversas serpenteando até tarde da noite, assim como o São Cristóvão, com seus 32 tipos de Bourbon à sombra das chuteiras imortais, e a Mercearia, pequena babilônia etílico-literária.
Feliz com minha constatação, decido tomar um chope, mas o Ceará me avisa que "A espera é de duas horas, sabe como é, fim de ano, mesa de firma...". Sei, sei. Fazer o quê? Antes os novos gargalos do crescimento do que o velho fundo do poço, penso eu, retomando a caminhada e brindando mentalmente à longevidade de nossos queridos bares.

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