segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O centauro e o abismo Por Alcione Araújo‏

O centauro e o abismo 

Por Alcione Araújo
Estado de Minas: 05/01/2010

"Insatisfeito, quis mais velocidade: resolveu voar, sendo mais pesado que o ar, sem ter asa nem pena" 


 




Depois de aprender a fazer o fogo, o homem resolveu cozinhar o alimento – impossível saber por que a idéia ocorreu, se crescia e multiplicava comendo cru. Segundo os antropólogos, a passagem do cru ao cozido foi um grande salto civilizatório – se as cozinheiras soubessem que avançaram a civilização, exigiriam lugar na lista do Nobel. Mas, ao cozer pela primeira vez o alimento nas mãos, uivou de dor, pois elas coziam junto – como uiva quem põe a mão no fogo, principalmente pelos outros. E o homem mostrou sapiência ao inventar a panela – pedra côncava, cabaça, concha, sei lá –, ou o que viríamos a chamar de panela, que cozinha o cru sem fritar as mãos. 

Mais que cozinhar na panela, o avanço foi criar um princípio, talvez maior que o próprio homem: quem não nasce capaz de realizar o que sonha, deseja e quer, em vez de se autocriticar como ambicioso, pretensioso ou visionário, que invente algo que realize o que sonha, deseja e quer. Esse algo sempre fora dele, extensão do seu corpo que, aliás, permanece o mesmo – exceto o rabo, que, relata Darwin, caiu logo que ficou erecto; e o crânio, que encolheu. 

Antes da panela, o homem, sempre apressado – só na era pós-panela aprendeu que afobado come cru –, domou outro animal – camelo, boi, elefante, cavalo, burro, avestruz, homem, etc –, montou-o e fez as tarefas com mais rapidez e menos cansaço. Tenho dúvida de quem veio antes, a panela ou a montaria – noutro dilema, sobre o ovo e a galinha, acho que o ovo veio antes; a galinha é melhor para comer, depois da panela, bem entendido, do que para ter idéia de fazer um ovo. Para opinar entre ovo e galinha, é preciso haver algo anterior a ambos, e não consigo atinar o que foi – ovolinha, galovo, sei lá. 

Sempre apressado, o homem achou que o animal não era rápido o bastante e inventou o motor, com potência de vários homens, fortes como quadrúpedes, que se mede em HP – horse power, cavalo de potência. Continua montado em cavalos, agora de quatro rodas. Com a nova extensão do corpo, virou algo como o centauro, imaginado pelos antigos que os contemporâneos realizaram: a cabeça – segundo Darwin, encolhida – o corpo de cavalo sobre quatro rodas. 

Insatisfeito, quis mais velocidade: resolveu voar, sendo mais pesado que o ar, sem ter asa nem pena. No fundo, sempre quis ser pássaro – um tal Ícaro colou penas no corpo, saltou do penhasco e se estabacou no mar. Aprendeu a lição? Nada. Usou o princípio de não se autocriticar e inventar a extensão do corpo que realiza o sonho: construiu um pássaro de corpo e asas metálicos. Como as asas não batiam, usou cavalos de potência para girar a hélice e impulsá-lo. E o mais pesado que o ar voou – o homem foi dentro, como se fora ele o pássaro. Seus pássaros maiores voam mais ágeis que o som, a lugares inimagináveis. 

Insatisfeito com o cérebro que o permitiu cozer, correr e voar, quis dispor do máximo de informação à velocidade da luz e inventou a extensão do cérebro: o computador e a internet. É agora um centauro alado de quatro rodas e um computador no crânio. Encolheu o cérebro e reduziu o uso. Cada homem sabe muito mais de muito menos – uma ilha só reconhece outra ilha do arquipélago. Mas sonha com o vôo incorpóreo, desintegrar-se aqui e reintegrar-se acolá. 

Esgotada a extensão – o que ele pode – volta-se à compreensão: o que ele é. Não há como inventar extensões para o que sonha, deseja e quer a alma – o ser, a subjetividade, a psiquê, ou que nome tenha isso que o homem é, além do corpo – essa coisa é um abismo obscuro, não muda nem se mostra, por mais que ele cozinhe, corra, voe. Estender-se não é entender-se.

Nenhum comentário:

Postar um comentário