quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Para especialistas, país tem uma dívida a ser paga à população afrodescendente - Max Milliano Melo‏

Diversas pesquisas mostram que problemas como desemprego, baixa escolaridade e violência atingem de forma muito mais intensa os brasileiros negros que os brancos. Para especialistas, país tem uma dívida a ser paga à população afrodescendente 

Max Milliano Melo
Estado de Minas: 26/12/2012 

Brasília – Dois países ocupam uma mesma e imensa porção da América do Sul. Um deles, o Brasil branco, é mais escolarizado, sofre menos com o desemprego e sua população tem renda maior que a do Brasil negro, onde apenas 4% dos habitantes concluíram o ensino superior e a pobreza extrema afeta muito mais pessoas. Apesar de essas duas nações terem, aparentemente, as mesmas condições de cuidar de suas populações, o Brasil negro ainda sofre com as consequências de um fenômeno cruel que deixou em enorme desvantagem: a escravidão. Os quase 400 anos em que negros eram encarados como simples mercadorias, animais de trabalho sem direitos, cavaram um abismo entre os dois Brasis, que precisam agora encontrar o caminho da reconciliação para que todos, independentemente dos traços físicos ou da cor da pele, possam ser, simplesmente, brasileiros.

Não faltam dados que mostram como os afrodescendentes são colocados na rabeira do espectro social. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2003, 8,4% dos negros encontravam-se em condições de extrema pobreza, enquanto entre os brancos esse índice era de 3,2%. Embora mulheres e homens negros representem 44,7% dos brasileiros, eles somam 68% dos 10% mais pobres no país. À medida que se avança em direção aos grupos mais ricos, ocorre um “branqueamento” da população, até que a presença negra seja reduzida a 13% do 1% mais rico.

O rendimento médio de uma mulher negra é a metade do de um homem branco. Um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostrou que o desemprego entre os brancos brasileiros era de 5,3% em 2005. O percentual entre os homens negros, no mesmo período, era de 8,1% e saltava para 14,1% entre as negras.

Segundo Irina Bokova, diretora-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a delicada realidade que vivem as comunidades de ascendência africana em todo o mundo é uma ameaça à própria sobrevivência da humanidade. “Em muitas regiões, a luta contra o racismo e a discriminação segue como um enorme desafio a ser enfrentado nas suas mais diferentes manifestações”, diz. 


“Esses flagelos minam as nossas sociedades, exacerbando desigualdades e divisões em todas as regiões do planeta”, completa.

Educação e violência No Brasil, o problema começa no nascimento e acompanha as crianças negras na escola. Um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) baseado no Censo 2010 mostrou que apenas 4% dos brasileiros negros completaram o ensino superior. De acordo com o mesmo levantamento, 56,8% dos afrodescendentes do país com mais de 10 anos não completaram o ensino fundamental. Um levantamento inédito feito com base na edição de 2011 do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) revelou que, mesmo nas escolas privadas, onde supostamente não haveria diferenças, brancos e negros têm desempenhos diferentes, com o primeiro grupo apresentando, em média, 3% mais acertos que o segundo. Entre os brancos de escola privada e os negros de escola pública, existe um abismo ainda maior de 21% no índice de respostas certas na prova.

Uma série de fatores sociais influenciam nesses resultados. Afrodescendentes têm menor apoio em casa e nos estabelecimentos de ensino para prosseguirem seus estudos. Nessa parcela da população, apenas 2,1% das mães e 2,8% dos pais têm ensino médio completo. “Outro problema alarmante é a violência. As estatísticas mostram que, a cada três assassinados no Brasil, dois são negros”, aponta Nelson Inocêncio, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), da Universidade de Brasília. “No Distrito Federal, quarto no ranking da violência contra os negros, a cada oito assassinados, sete são negros”, acrescenta. 

Os dados citados por Inocêncio são do Mapa da violência, pesquisa divulgada no início deste mês pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Social, do governo federal. Na Paraíba, onde a situação é mais grave, esse índice chega a 40 negros mortos para cada branco. Em segundo e terceiro lugar, aparecem Alagoas e Pernambuco. “Infelizmente, entre os policiais brasileiros, persiste uma imagem de que o negro antes de mais nada é suspeito. E, quando a vítima é afrodescendente, existe uma espécie de condescendência, há sempre uma explicação, um atenuante”, afirma o pesquisador da UnB.

Lei x realidade Há ainda muitas outras formas de violência contra essa parcela de brasileiros. Pelo menos 3,5 mil comunidades quilombolas reivindicam o direito à terra onde vivem. Os ataques a terreiros de candomblé, umbanda e outras religiões de matriz são constantemente relatados. Demonstrações de racismo são denunciadas pela imprensa. 

“O Brasil tem leis boas voltadas para a proteção da comunidade negra. Qualquer jurista que analisar a letra fria de nossa legislação elogiará o país. Há leis que tornam o racismo crime inafiançável. É um equívoco dizer que o Brasil não tem ações de proteção das comunidades negras. O grande problema é a aplicação. Vivemos em um país onde a lei está muito distante da realidade”, prossegue Inocêncio.

O presidente da Fundação Palmares, Eloi Mendes, acredita que o país precisa encarar essas feridas ainda abertas e promover um grande processo de reconciliação nacional para que a dívida de mais de 400 anos de escravidão possa finalmente ser paga. “Trata-se de avançar enquanto nação. Sem rancor, sem mágoa”, defende. Para ele, é preciso ter consciência de que a história negra é a história de todos, e que os problemas ligados a essa parcela da população também são responsabilidade de todos. “Meu maior sonho é que a memória produza um resultado positivo na mente de políticos e das demais pessoas, resultando na promoção da igualdade”, diz.

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