segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Entrevista da 2ª Luis Augusto Rhode

FOLHA DE SÃO PAULO

ENTREVISTA DA 2ª LUIS AUGUSTO ROHDE
Uso da neurociência é o próximo desafio dos psiquiatras
Para brasileiro que ajudou a reescrever 'bíblia' da psiquiatria, falta base biológica aos diagnósticos
RAFAEL GARCIAEM WASHINGTONNão é exagero dizer que Luis Augusto Rohde é o psiquiatra mais influente do Brasil. Se ainda não o é, pode passar a ser a partir de maio de 2013, quando sai a nova edição do DSM, o Manual de Diagnósticos e Estatísticas, publicação considerada a bíblia dessa especialidade médica. Rohde foi o único brasileiro convidado para a força-tarefa da Associação de Psiquiatria Americana que revisou os critérios de definição dos transtornos mentais.
A transição da quarta para a quinta edição do manual, com lançamento previsto para maio, não foi nada fácil.
Mudanças do DSM-4 para o DSM-5 atraíram críticas de psicólogos e familiares de pacientes e foram alvo do lobby da indústria farmacêutica.
Sob pressão, sem tempo e com orçamento limitado, psiquiatras recuaram de algumas propostas de mudança.
Rohde, professor titular de psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atuou num dos setores mais controversos da força-tarefa: o que cuidou do TDAH (transtorno do deficit de atenção por hiperatividade), grupo acusado de inflar artificialmente a epidemia desse problema mental.
O psiquiatra, porém, argumenta que o novo manual está mais coerente e confiável. Em entrevista à Folha, Rohde também explicou por que o DSM-5 ainda não traz a "mudança de paradigma" que muitos cientistas desejavam: a de tornar a psiquiatria uma especialidade médica mais baseada em biologia.
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Folha - Como um manual feito pela Associação de Psiquiatria Americana vai influenciar o atendimento à saúde mental no Brasil?
Luis Augusto Rohde- O sistema classificatório oficial no Brasil é a CID (Classificação Internacional das Doenças), da OMS, que está na sua décima versão. Está atualmente em processo de revisão, com a próxima versão prevista para 2015. Na prática clínica de saúde mental, então, o DSM-5 não terá impacto direto sobre o psiquiatra e o médico de família que atende casos psiquiátricos ou neurológicos.
Entretanto, em todos os serviços universitários e naqueles que trabalham com pesquisa em saúde mental no Brasil, o DSM é mais utilizado que a CID. É nesses setores que o impacto vai se dar inicialmente.
Como esses serviços são formadores de profissionais da área de saúde, os conceitos vão sendo incorporados à prática deles, embora eles tenham também que respeitar os critérios da CID.
O DSM-5 desistiu de criar algumas novas categorias, como o "transtorno da regulação do humor e do comportamento" e a "síndrome do risco de psicose". Os critérios para diagnosticar esses males falharam nos testes com pacientes?
No final dos testes, alguns diagnósticos apresentaram confiabilidade muito baixa. Além dos dois que mencionaste, também não se qualificaram o "transtorno misto de ansiedade e depressão" e a "autoagressão não suicida". Agora essas categorias provavelmente irão para a seção 3 do manual, designada àquelas que precisam de mais dados para que possam ser consideradas diagnósticos psiquiátricos.
O diagnóstico do "transtorno da regulação do humor e do comportamento" teve uma confiabilidade modesta -um grau acima da ruim-, mas será mantido, em função da qualidade de pesquisa que já existe sugerindo a validade do diagnóstico.
Os critérios para diagnosticar crianças com TDAH (transtorno do deficit de atenção por hiperatividade) foram muito criticados. O receio é que eles ampliem o que seria uma falsa epidemia e que crianças saudáveis passem a ser medicadas com o estimulante ritalina. O que muda no DSM-5?
O DSM-4 exigia que prejuízos funcionais causados pelos sintomas do TDAH estivessem presentes na vida do indivíduo antes dos sete anos de idade para o diagnóstico ser dado. O que temos visto, porém, é que existe um grupo significativo de crianças nas quais os sintomas só ficam evidentes quando entram na escola, porque é na sala de aula que existe uma demanda atencional mais clara.
O que o comitê fez foi deslocar a idade mínima de início dos sintomas de sete para 12 anos.
A afirmação de que vai haver uma explosão no número de diagnósticos não é correta. É possível que a prevalência aumente um pouco, mas isso será produto da detecção correta de um grupo de crianças que, até então, estava excluído da possibilidade do diagnóstico mesmo tendo um quadro claro de TDAH com prejuízo funcional.
Houve mudança nos critérios para diagnosticar o autismo? Pais temem que seus filhos não sejam mais considerados portadores de um transtorno e percam o direito a assistência médica.
No autismo, a ideia foi a de que o transtorno pudesse ser compreendido mais sob uma perspectiva dimensional, assim como o TDAH. Em vez de usar categorias claramente distintas, usamos um "espectro" autista e com isso abandonamos nomenclaturas que tratavam o problema como diferentes transtornos. A divisão era entre síndrome de Asperger, autismo, transtorno desintegrativo... Agora a nomenclatura vê "transtornos do espectro autista". A ideia não é excluir crianças do diagnóstico, mas ter uma compreensão mais real, mais moderna, dos transtornos autistas e do seu espectro.
O DSM-4 levou muito tempo para ser revisado. O DSM-5 será atualizado com mais frequência?
O DSM-5 vai ser um documento "vivo", porque não faz sentido esperar 29 anos para os sistemas classificatórios passarem por revisões. Mas, para explicar a razão dessa demora, é preciso entender uma outra coisa.
Eu e muitos outros colegas tínhamos uma crítica com relação ao processo. Quando entrei no esforço de revisão do DSM, eu tinha o desejo e a fantasia de que seria possível ter uma modificação de paradigma na forma de se fazer diagnóstico psiquiátrico.
Nós queríamos a inclusão de marcadores neurobiológicos [sinais físicos do funcionamento do cérebro e do sistema nervoso] na prática clínica. Queríamos aproximar a psiquiatria de um estágio de desenvolvimento onde está a oncologia, por exemplo.
O que aconteceu foi que, ao revisar o que existia de evidência científica dentro da área de psiquiatria, constatamos claramente que ainda não estamos prontos para uma mudança de paradigma. Isso gerou na comunidade científica uma certa sensação de frustração.
Mas foi possível fazer algo extremamente importante: analisar o que poderia ser melhorado nos critérios diagnósticos e revisá-los à luz da medicina baseada em evidências, para torná-los mais válidos. Isso levou em conta tudo o que foi feito de pesquisa durante esses 29 anos.
A falha em usar biologia para diagnósticos sinaliza um momento de crise na psiquiatria?
Na verdade, evoluímos bastante na compreensão dos aspectos neurobiológicos dos transtornos mentais. Quando analiso um grupo de crianças com TDAH e as comparo com um grupo de crianças com desenvolvimento típico, consigo ver aspectos neurobiológicos, de neuroimagem, genéticos e de resposta a tratamento que são diferentes entre os grupos.
O que ainda não conseguimos fazer é a tradução dessas diferenças de grupo para um indivíduo específico, a ponto de os avanços em neurobiologia serem úteis no diagnóstico individual. Ainda não estamos no mesmo patamar de algumas áreas da medicina como a endocrinologia, a cardiologia ou a oncologia.
O diagnóstico psiquiátrico ainda tem de ser muito baseado no exame do estado mental, na história clínica do paciente e nos dados que conseguimos com familiares.
Entidades de classe dos psicólogos reclamam que a revisão do DSM-5 foi muito restrita a psiquiatras. Eles não têm razão em reivindicar um papel maior?
É difícil avaliar isso, porque eu teria de saber qual era o tamanho da participação esperada por essas entidades. Na maioria dos grupos de trabalho houve participação de psicólogos e de outros não psiquiatras. No grupo que trabalhou com TDAH, dois dos oito membros eram psicólogos.
Não é verdade, então, que não houve participação da psicologia. Houve até participação externa de psicólogos, porque os critérios de diagnóstico ficaram abertos para escrutínio público no site da APA por um longo tempo.
Um estudo da Universidade Harvard indicou que há mais psiquiatras da força-tarefa do DSM-5 envolvidos com a indústria farmacêutica hoje do que na época da quarta edição. O conflito de interesses aumentou?
Não tenho uma ideia clara de qual é o tamanho da pressão da indústria farmacêutica, mas posso dizer que a APA tomou medidas claras para tentar controlar ao máximo essa pressão da indústria.
Ela determinou que a participação de pessoas no trabalho e no desenvolvimento do DSM-5 fosse dada com um limite claro de contato com a indústria. Os integrantes não poderiam receber mais de US$ 10 mil por ano da indústria nem ter mais de 5% da renda bruta vinda de qualquer relação com a indústria.
Esse limiar é o mesmo adotado por várias outras associações médicas nos EUA.
Isso tirou dos grupos de trabalho uma série de pessoas que tinham atuado no DSM-4 e até algumas pessoas que são consideradas experts em suas áreas.
O artigo de Harvard tem um viés claro, porque entre 1990 e 1994, quando o DSM-4 estava sendo discutido, não era obrigatório para os membros revelar potenciais conflitos de interesse.
Os novos critérios do DSM vão ajudar a melhorar a tensa relação entre psiquiatras e psicólogos?
Na minha visão não existe essa animosidade entre psiquiatras e psicólogos. A tensão que existe é entre psiquiatras e um grupo de psicólogos que tem dominado as entidades de classe.
Eles representam um grupo da psicologia social que não admite a possibilidade de diagnóstico psiquiátrico, o que não é a realidade da psicologia como um todo.
Tenho bastante convivência com a psicologia dentro de meios universitários, com o pessoal da neuropsicologia e com diversas áreas clínicas, e não sinto animosidade por parte desses outros grupos.
O que é mais importante o público leigo entender sobre as mudanças na psiquiatria?
A mensagem é que o DSM-5 que vai aparecer em maio de 2013 é o melhor esforço possível, dado o grau de evidência científica disponível no momento, para que haja um avanço na forma de diagnosticar e de acolher os portadores de problemas de saúde mental.

    FRASES
    "Queríamos a inclusão de marcadores neurobiológicos [sinais físicos do sistema nervoso] na prática clínica. Ao revisar o que existia de evidência científica, constatamos que ainda não estamos prontos para uma mudança de paradigma"
    "Não estamos no mesmo patamar de algumas áreas da medicina como a endocrinologia, a cardiologia ou a oncologia. O diagnóstico psiquiátrico ainda se baseia no exame do estado mental, na história clínica do paciente e nos dados que conseguimos com familiares"


    RAIO-X LUIS AUGUSTO ROHDE
    IDADE
    47 anos
    ATUAÇÃO
    Psiquiatra e professor-titular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
    ESPECIALIDADE
    Neurobiologia do TDAH
    CONTRIBUIÇÃO INTERNACIONAL
    Ajudou na elaboração da quinta edição do manual de diagnósticos da Associação Psiquiátrica Americana

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