sábado, 5 de janeiro de 2013

ENTREVISTA/LUIZE VALENTE/JORNALISTA E ESCRITORA » Viagem no tempo‏

Estado de Minas: 05/01/2013

Mesmo não sendo de família judaica, a jornalista Luize Valente confessa que sempre teve grande interesse em estudar questões ligadas ao judaísmo e à trajetória dos judeus no mundo. Em parceria com a fotógrafa Elaine Elger, lançou um livro e dois documentários relacionados ao tema, ao qual voltou recentemente com a publicação do romance O segredo do oratório, que marca sua estreia na literatura de ficção. 

Como boa contadora de histórias e, sobretudo, com incrível capacidade para prender o leitor, ela narra a aventura de uma estudante de medicina chamada Ioná. Muito bonita, aos 24 anos, por se julgar descendente de cristãos-novos que vieram para o Nordeste brasileiro na época da colônia, a estudante empreende uma longa e surpreendente jornada desde o Recife ao sertão da Paraíba, São Paulo e Nova York em busca de suas raízes, que aos poucos vão sendo desvendadas. 

Conta para isso com a ajuda de muita gente ligada ao assunto, como a jornalista Ana, que fica conhecendo no Recife; a professora Ethel Mendelstein, especialista em história judaica e com muito prestígio na comunidade; e o genealogista Pedro, entre outros. Eles a ajudam a esclarecer o intricado quebra-cabeça de seu passado familiar, que se confunde com a própria história oculta do Brasil. 

Nascida no Rio de Janeiro, onde ainda vive, Luize Valente diz que o seu grande desafio ao escrever O segredo do oratório foi o de dar veracidade aos personagens e criar uma história de vida para eles sem cair em lugares-comuns. “Toda ficção tem uma verdade interna, que o leitor acompanha e, no caso do romance histórico, essa verdade tem que ser compatível com fatos reais”, afirma a escritora em entrevista ao Pensar.

Como começou seu interesse em estudar as raízes judaicas no Brasil? Tem algo a ver com sua história pessoal?

Foi há cerca de 12, 13 anos, principalmente depois que eu e a fotógrafa Elaine Elger lançamos o livro Israel, rotas e raízes, com o qual queríamos retratar comunidades judaicas em vários países, inclusive no Brasil. Tempos depois, uma matéria publicada em jornal paulista aguçou ainda mais nossa curiosidade. O texto falava de uma pequena cidade na divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba, onde a população era brasileira de várias gerações, cristã, mas tinha hábitos que remetiam ao judaísmo, desvinculados da prática religiosa. Fomos lá para conferir e a partir daí começamos outra pesquisa, que acabou me levando a escrever O segredo do oratório. Afinal de contas, queria sabe onde é que estava o fio da meada.

E conseguiu descobrir?

O fio da meada estava lá em Portugal, com a conversão forçada dos judeus ao catolicismo, a partir da Inquisição, que foi instaurada na mesma época em que nosso país foi descoberto, nos anos de 1500. Com a Elaine fiz também dois documentários: Caminhos da memória – A trajetória dos judeus em Portugal, que saiu em 2002, e A estrela oculta do sertão, de 2005, sobre as raízes judaicas do Brasil. Eles foram o ponto de partida para o romance O segredo do oratório. Sobre minhas raízes familiares, meus avós maternos são portugueses, mas é apenas coincidência. Não sou de família judia. Meu interesse pelo judaísmo, como povo, cultura, vem desde a adolescência e talvez venha daí a minha obsessão em estudar a história deles. 

Como foi mesclar ficção e realidade – como o caso dos judeus de Pernambuco que foram para Nova York depois da expulsão dos holandeses em 1654 – na composição do romance?
O grande desafio foi dar veracidade aos personagens, criar uma história de vida para eles e inseri-los no contexto histórico real. Toda ficção tem uma verdade interna que o leitor acompanha e, no caso do romance histórico, essa verdade tem que ser compatível com casos reais. De fato, 23 judeus partiram do Recife com a expulsão dos holandeses e foram para Nova York, onde fundaram a principal comunidade judaica dos Estados Unidos. Um dos meus personagens, fundamental na trama, faz esse trajeto, mas tive que tomar cuidado para que a história dele respeitasse a realidade dos fatos. Ele viajou escondido... Por isso as pesquisas tiveram que ser bem checadas, para não fugir da verdade histórica, documental. Ou seja, o personagem não aparece nos registros históricos, mas a sua existência na ficção é completamente verossímil, porque o contexto o é. 

E como você fez suas pesquisas? Foi a campo, esteve no interior da Paraíba, onde boa parte da trama do romance se desenvolve?

Li muitos livros de história, de muitos estudiosos do Nordeste, como José Gonsalves de Melo, Olavo Medeiros e outros. E claro, horas e horas de conversas com a mestre do assunto, a professora Anita Novinsky, que no romance se transformou na professora Ethel Mendelstein. Outra fonte “viva” a quem até hoje recorro, o genealogista Paulo Valadares, também serviu de inspiração para o personagem Pedro. Mas como queria justamente escrever um romance e não um texto acadêmico, O segredo do oratório tem um lado meio road book, uma viagem pelo sertão feita pelas protagonistas Ioná, que tenta desvendar o mistério da sua origem, e a jornalista Ana, que quer contar essa história. Rodei os sertões da Paraíba e do Rio Grande do Norte quando fiz o documentário A estrela oculta do sertão. Os locais por onde Ana e Ioná passam foram visitados por mim. Outros foram inventados, mas dentro da cenografia local, se podemos chamar assim.

Em quem se inspirou para criar a personagem Ioná?

Como disse, não só a protagonista Ioná, como a professora Ethel, o genealogista Pedro e a própria Ana, que tem várias características minhas; a principal é ser jornalista e adorar o tema do judaísmo. Ioná, no caso, foi inspirada no médico paraibano Luciano de Oliveira, figura-chave do documentário A estrela solitária do sertão. O comprometimento de Luciano com sua própria história e com a busca de suas origens me fascinou desde o primeiro momento em que o vi. Luciano tinha um oratório há gerações na família. Aquilo me fascinou. Tentei trazer essa verdade para Ioná. E criei uma vida e um histórico familiar para ela que são diferentes dos de Luciano. O fato de a personagem principal ser mulher tem a ver com a questão matrilinear, que define a herança judaica, fundamental na construção do romance. Ioná é uma “garimpadora” de raízes, ela pesquisa o passado por meio da tradição. 

Acostumada a escrever para a televisão, como foi para você a aventura do primeiro texto de ficção?

Foi muito prazerosa, apesar de difícil. Sou jornalista e editora de texto de televisão, o que me aproxima da linguagem audiovisual. Talvez isso esteja bem presente na minha forma de escrever, já que algumas pessoas me disseram que o livro é muito visual e com ritmo dinâmico. Os capítulos são curtos, as frases são curtas, criei ganchos para manter o mistério. Tive enorme preocupação com a veracidade interna da trama e com a interação dessa veracidade com os fatos históricos e cotidianos. Chequei exaustivamente datas, locais, distâncias, árvores genealógicas, tudo. Procurei dar o máximo de realidade para envolver o leitor. Diria que é uma liberdade vigiada. 

Algum projeto a caminho?

Sim, já estou com um novo projeto em andamento. É também um romance histórico, a trama já está delineada, estou fazendo as pesquisas. Parte do livro tem como pano de fundo o período da Segunda Guerra Mundial e uma personalidade lendária, o cônsul de Portugal em Bordeaux, Aristides Souza Mendes, que ajuda a salvar milhares de judeus e outros perseguidos pelo nazismo. O livro se passa no Brasil, Portugal e Antuérpia, e também traz a saga de uma família de origem portuguesa. Uma boa notícia é que minha agente literária, Luciana Villas Boas, acabou de fechar a primeira venda de O segredo do oratório para o exterior: Holanda. Estou muito feliz em ver nossa história atravessando o oceano. 


O segredo do oratório
. De Luize Valente
. Editora Record 
. 320 páginas, R$ 39,90

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