quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Nina Horta

FOLHA DE SÃO PAULO


Biblioteca para viagem
Cozinheiro não pode ler só livros de receitas. Bem ao contrário, tem que fazer um bom muro de cultura geral
Livros para as férias. Tem aquele livro de papel que todo mundo diz que é bom, e você não conseguiu passar da terceira linha. Em falta de outro, você lê inteiro na viagem de avião. Aconselho "Uma Casa para o sr. Biswas", do V.S. Naipaul (editora Cia. das Letras).
Vivo falando que cozinheiro não pode ler só livros de receitas. Bem ao contrário, tem que fazer um bom muro de cultura geral para enfrentar depois as variações de modos, de jeitos de comer, de paladares. Aprendi a tomar uísque na mais tenra idade. Havia um detetive chamado O Santo. Toda vez que ele tomava um uísque, eu me levantava da leitura no sofá e provava uma colherinha de chá da bebida. Acostumei com o gosto.
Nem sei quais livros indicar. Talvez "A Cidade e as Serras", de Eça de Queiroz (várias editoras). A mudança da cidade para o campo, o drama do peixe encalhado no elevador até chegar à galinha ensopada que tinha fígado e tinha moela. É de um frescor.
"Madame Bovary" (várias editoras), porque é preciso. Fala pouquíssimo de comida, mas tenho por mim que no fundo ela se suicidou não por causa das dívidas e dos livros de cavalaria que havia lido, mas por causa do cheiro horrível da sopa de cebolas que o marido tomava todo dia, que empesteava todos os vãos da casa enquanto ela, entediada, beliscava uma amêndoa. E sonhava, depois de ter provado num baile um sorvete de marasquino com colherinha de prata, tão gelado que lhe doeram os dentes.
Experimente um Proust, comida francesa, salões parisienses, a empregada da tia Léonie, esqueci o nome dela. E como é que um cozinheiro pode sobreviver sem entender o que são as madeleines do autor?
Já que estamos na área dos memorialistas, o brasileiríssimo Pedro Nava escreve bem demais, principalmente sobre a casa da avó, o pomar, as jabuticabas, a abóbora cozida na fogueira com vinho do Porto que ficava como castanha portuguesa. As compotas tão lindas, onde as goiabas parecem o "de-dentro" das orelhas. Orelhas de goiaba. Estou escrevendo longe dos livros e talvez esteja inventando um pouco.
De livros de culinária, só os que realmente ajudam na cozinha. Os da Rita Lobo e da Marcella Hazan. Cozinhar nas férias é muito bom.
Eu me lembro de tanta comida boa, em Paraty. Inclusive com a casa ainda por acabar, cozinhando em fogões precários e de lenha na casa de mandioca, aquela casinha velha, de taipa, linda, dava até um fundo mais apetitoso para os camarões fritos bem pequenininhos, com casca e tudo. No Rio de Janeiro, tinham o nome de camarão-lixo, aqui são sete barbas.
E marrecos cozinhando em panela, amolecendo com gotas de tangerina-do-rio. Tem uma coisa que minha cunhada adorava e fala até hoje. Era um peixe vermelho, frito na manteiga e um esparregado ao lado. Tinha levado um livro português e assim se chamavam nele legumes ou verduras batidinhas e cozidas.
Agora, assim, na praia, talvez nem seja preciso ler nada. Comer num bar de ilha, tudo frito, mesmo, com uma caipirinha gelada, uma mandioca derretendo, sei lá se tem livro que ganhe disso.
    via Lea Beraldo no facebook

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