terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Último ato [Walmor Chagas] - Gustavo Fioratti

FOLHA DE SÃO PAULO

Amigos de Walmor Chagas e sua filha, a cantora Clara Becker, contam como foram os dias finais na vida do ator, que se matou no dia 18 com um tiro na cabeça
GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULOCom que determinação teria Walmor Chagas colocado em prática o ato final do personagem de sua última peça, "Um Homem Indignado"?
No monólogo, que escreveu e levou ao palco em 2004, um ator veterano se debruça sobre enfermidades sociais e, desesperançoso com a velhice, põe fim à própria vida.
Dias antes de cometer suicídio na fazenda em que morava em Guaratinguetá (SP)aos 82 anos, Walmor comparou seu organismo a "um calhambeque que tinha de ir todo dia para a oficina", conta à Folha a cantora Clara Becker, filha do ator gaúcho e da atriz Cacilda Becker (1921-1969).
"Num dia é o para-choque, no outro é a rebimboca da parafuseta", brincou ele, referindo-se à bateria de exames médicos a que se submeteu nos últimos dias de vida.
Walmor era diabético e sofria, desde 2005, de degeneração da mácula, doença ocular sem cura que o impedia de ler, sua maior paixão. A visão, diz Clara, piorara nos últimos tempos.
"Foi o primeiro baque e o principal. Ele começou a ficar dependente de mim e achou que estava dando trabalho. Eu dizia que era natural: os pais cuidam dos filhos, e os filhos cuidam dos pais."
A fragilidade não eclipsou seu senso de humor, traço forte na personalidade do ator cuja trajetória profissional passa pela criação do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), em São Paulo, e por trabalhos entre cinema, teatro e televisão nos mais de cem títulos em que atuou.
Além de marido e parceiro da mítica Cacilda Becker, no teatro atuou ao lado de Ítalo Rossi (1931-2011). Seu último trabalho foi no filme "A Coleção Invisível", de Bernard Attal, ainda não lançado.
LIGADO NO MUNDO
Até o fim da vida, ele "esteve ligado no mundo", diz Clara. Quase cego, assistia à TV bem próximo a ela, sempre na companhia de seus três cães, Fred, Frida e Jade.
Divertiu-se com a novela "Avenida Brasil" e avaliou Adriana Esteves como "uma atriz sem medo". Admirava ainda o ator João Miguel, a quem se referiu em sua última semana de vida como "o maior ator de sua geração".
Desde meados de 2012, inapetente, começou a emagrecer. "Quando passei o fim de ano na fazenda, insisti para que ele fizesse um checkup em São Paulo."
Walmor viajou à capital no dia 6 de janeiro, foi examinado por uma gastroenterologista, que diagnosticou esofagite e gastrite. Passou ainda pelo ortopedista, pois fraturara o metatarso em um tombo no fim do ano.
Na quarta, dia 16, quis retornar à fazenda e prometeu à filha que voltaria a São Paulo em três dias. Ao despedir-se de Clara, disse: "Eu te amo, te adoro! Volto na semana que vem". Um motorista o conduziu a Guaratinguetá.
A cidade fica a 187 km de São Paulo. Para chegar à fazenda, na zona rural, onde também funciona a pousada Sete Nascentes, são três horas de carro desde a capital. Os 3 km finais são de terra, com trechos íngremes, mas que um carro comum pode superar. No alto do morro, a vista se abre para a serra.
Não é possível dizer que Walmor tenha sido uma pessoa solitária ali. Foi um retiro voluntário. Ele mudou-se do Rio há 20 anos para aquelas terras, por cuja porteira passavam, além da filha, duas irmãs e amigos longevos, como as atrizes Camilla Amado e Lucélia Santos.
Na mesma propriedade, em casa separada, vive a família de José Arteiro de Almeida, cearense que trabalhou para Walmor desde os anos 1980. Ele foi obreiro de um teatro criado pelo ator no Rio, a sala Ziembinski. E há dois anos -indício da preparação para a morte- Walmor passou a escritura da pousada para o seu nome.
Em Guaratinguetá, o ator cultivou amizades. Algumas de suas últimas refeições foram preparadas por Masae Shimizu, mulher de Antonio Cardoso. Sujeito de olhar sereno e barba rala, ele administra um restaurante nas cercanias da fazenda. Ela guarda receitas para pessoas sem apetite.
Walmor costumava apreciar conversas sobre assuntos filosóficos, diz Cardoso, e nessa toada costumava incluir também sua percepção sobre a morte. "Era um cético convicto", diz. "Para ele, a morte era realmente o fim."
DETERMINAÇÃO
A hipótese de suicídio foi confirmada na última quinta pelo 2º DP de Guaratinguetá. O corpo de Walmor foi encontrado, no dia 18, por Arteiro, sentado na copa de sua casa. Com o tiro que disparou contra a cabeça com uma pistola calibre 38, o corpo e a cadeira reclinaram-se para trás levemente e, escorados por um armário, não tombaram.
Naquele dia, o ator havia tomado sol pela manhã. Também perguntara a Arteiro como estava a família dele, abordagem pouco frequente.
Walmor era "irredutível", diz Cardoso. "Se tinha algo em mente, era impossível demovê-lo daquilo", conta, pouco surpreso com o suicídio. "Falava que queria morrer antes de usar fraldão."
Sua determinação pode ser ilustrada com a construção da casa onde viveu. "Quando meu pai comprou a fazenda, em 1993, não havia estrada nem luz elétrica. O transporte de mantimentos era no lombo da mula Lavrinha", diz Clara. Além de abrir com recursos próprios a estrada para o terreno, ele participou de campanha publicitária da Eletropaulo em troca de eletricidade na vizinhança.
Segundo a atriz Camilla Amado, Walmor lhe disse que, se um dia se matasse, não deixaria carta de suicídio, para não tornar o ato dramático demais. "Ele dizia que não gostava muito de dramas, gostava de tragédias." De fato, não houve nem bilhete.


    FRASE
    "Ele ficou dependente de mim e achou que dava trabalho. Eu dizia que os pais cuidam dos filhos e os filhos cuidam dos pais"

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