sábado, 9 de fevereiro de 2013

O patrocínio ameaça o Carnaval? [Tendências/debates]

folha de são paulo

MARTINHO DA VILA
O patrocínio ameaça o Carnaval?
NÃO
Uma ajuda às escolas de samba
Diz um samba-enredo:
"A grande paixão que foi inspiração de um poeta é o enredo que emociona a velha guarda lá na comissão de frente como a diretoria. Glória a quem trabalha o ano inteiro em mutirão! São escultores, são pintores, bordadeiras... São carpinteiros, vidraceiros, costureiras, figurinista, desenhista e artesão, gente empenhada em construir a ilusão. E que tem sonhos como a velha baiana que foi passista e brincou em ala. Dizem que foi o grande amor de um mestre-sala. O sambista é um artista e o nosso 'Tom' é o diretor de harmonia. Os foliões são embalados pelo pessoal da bateria. Sonho de rei, de pirata e jardineira, pra tudo se acabar na quarta-feira. Mas a quaresma lá no morro é colorida com fantasias já usadas na avenida, que são cortinas, que são bandeiras... Razão pra vida tão real da quarta-feira".
Um desfile de escola de samba é emocionante, mas dá muito trabalho e é demasiadamente dispendioso. Mesmo nos tempos remotos, os sambistas não podiam fazer uma boa apresentação sem dinheiro. Hoje em dia, é preciso um dinheirão.
Antigamente, as escolas do Rio eram financiadas por comerciantes dos bairros onde eram sediadas, por meio de doações, registradas em um caderno chamado "livro de ouro".
Quando as prefeituras resolveram organizar e subvencionar os desfiles, os comerciantes se sentiram desobrigados de colaborar e as escolas passaram por grandes dificuldades. As subvenções, além de insuficientes, só eram concedidas bem perto dos Carnavais e, muitas vezes, depois deles.
Então, os dirigentes passaram a recorrer aos banqueiros de jogo de bicho. Os bicheiros socorriam as escolas e, por isso, tinham a imagem de benfeitores, como os mecenas patrocinadores da cultura. Muitos deles, direta ou indiretamente, assumiram a administração das escolas e criaram a Liga Independente das Escolas de Samba.
Hoje, com o dinheiro arrecadado e distribuído pela Liesa, uma escola bem administrada, que apresenta um enredo envolvente, que não necessita de tecnologia de ponta, se tiver um carnavalesco criativo, um contingente unido, uma boa equipe de harmonia, um excelente mestre-sala e uma brilhante porta-bandeira, não precisa de patrocínio para fazer um belo Carnaval.
Principalmente se tiver uma competente bateria e um contagiante samba-enredo.
Acontece que o desfile virou "o maior espetáculo da Terra" e as diretorias não podem abrir mão de patrocínios. O rateio proporcional distribuído pela liga mal dá para a construção do carro abre-alas, para a confecção das fantasias essências nem para a preparação da comissão de frente, de onde se espera, sempre, um show à parte.
Mantendo determinados cuidados, o patrocínio não prejudica -desde que a escola não se apresente como um veículo de propaganda.
Um bom exemplo, modéstia à parte, é o caso da minha Unidos de Vila Isabel, que conta com ajuda financeira da Basf para desenvolver um enredo sobre agricultura. Como pode ser constatado no nosso samba, não citamos o nome da patrocinadora nem nos referimos a produtos químicos. Tampouco fazemos apologia de transgênicos, área de atuação da empresa, que está legalmente no Brasil e à qual somos muito gratos.
Fizemos a parceria porque, nos tempos atuais, uma escola, para sonhar com o título de campeã, deve fazer se adaptar aos novos padrões, em que os efeitos visuais têm grande importância.
Para uma escola ser realmente competitiva, o patrocínio é imprescindível, assim como o é para a montagem de uma ópera, um grande concerto ou uma peça de teatro.


LECI BRANDÃO
O patrocínio ameaça o Carnaval?
SIM
Há vida fora do sambódromo
Quando patrocinadores definem o enredo e a dinâmica das escolas de samba na avenida, sim, o patrocínio ameaça o Carnaval em sua legitimidade. Felizmente, esse tipo de situação ainda não é a regra, mas é de conhecimento público que algumas escolas já mudaram seus enredos em função do patrocinador.
Um exemplo disso é a Estação Primeira de Mangueira, que recebeu muitas críticas por não levar para o sambódromo, neste ano, o enredo em homenagem a Jamelão. Por razão de patrocínio, preferiu falar sobre o Estado de Mato Grosso.
No entanto, em 2012, quando fez um desfile memorável, com um enredo legítimo, que celebrava o bloco Cacique de Ramos, nossa escola sequer participou do desfile das campeãs.
Uma análise superficial sobre essas duas situações poderia nos levar a crer que, atualmente, apenas sobrevive no time das campeãs as escolas cujos enredos são patrocinados. Acredito que ainda não vivemos essa realidade, mas, certamente, a legitimidade dos enredos não tem sido suficiente para atender às expectativas dos jurados.
Sim, o patrocínio, aliado aos recursos públicos, tem se tornado cada vez mais essencial para a realização do espetáculo grandioso que estamos acostumados a assistir.
Entretanto, não devemos esquecer que há vida nas escolas fora das arquibancadas dos sambódromos. A maioria dessas agremiações se mantém graças a uma comunidade que as legitima e o desfile é o resultado do trabalho que essas pessoas fizeram ao longo do ano.
Sempre vale a pena lembrar que as escolas de samba foram criadas por comunidades negras e pobres. Eram espaços de ressignificação do mundo, diante da realidade de preconceito, racismo e exclusão vivida no cotidiano.
Durante muito tempo, o Carnaval feito por essas pessoas permaneceu à margem dos espaços de poder. Mas, como tudo que é legítimo, ganhou força e só aí passou a ser pauta da mídia, se tornando interessante para o mercado e para os patrocinadores.
Por fazerem um espetáculo criativo, grandioso e autêntico, as escolas de samba são excelentes vitrines por meio das quais as empresas podem "vender" suas marcas. E isso as escolas não podem perder de vista, para que a relação de troca entre elas e os patrocinadores seja negociada em pé de igualdade, onde todos saiam ganhando.
O patrocínio é sempre um bom negócio para as empresas, mas só é uma boa solução para as escolas quando ele soma. E, para que isso aconteça, as comunidades devem ser empoderadas e se apropriar do resultado de seu trabalho. Aí se faz necessária a adoção de políticas voltadas para essas comunidades.
Afinal, o Carnaval é a festa mais popular e simbólica do nosso país e patrimônio imaterial da cultura brasileira. Além disso, movimenta a economia, gera emprego, trabalho e renda.
Portanto, nada mais justo que o poder público tenha um olhar especial voltado para as pessoas que dedicam suas vidas à realização desse espetáculo.
Sim, o patrocínio ameaça o Carnaval, mas só se o Estado não cumprir o seu papel e se os empresários não tiverem visão suficiente para perceber que o que faz dos desfiles de escola de samba um grande espetáculo é justamente o fato de essas agremiações e seus artistas se sentirem livres para criar e fazer sua arte da forma que sempre fizeram.

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