terça-feira, 5 de março de 2013

Formato da cabeça não tem relação com a personalidade

Depois de analisar cerca de 5 mil pessoas em várias partes do mundo, grupo internacional conclui que formato da cabeça não tem relação com a personalidade


Marcela Ulhoa

Estado de Minas: 05/03/2013 




 (Anderson Araújo/CB/D.A Press)

A ideia de que homens com rosto mais largo são violentos ou de que é possível ver no formato do crânio tendências à submissão, à benevolência e à amabilidade pode parecer completamente superada. Entretanto, essa não é a realidade, e, ainda hoje, mesmo em renomadas revistas científicas, é possível encontrar estudos aparentemente sintonizados com a teoria do alemão Franz Joseph Gall, que, no início do século 19, propôs a frenologia, ou o estudo da personalidade humana a partir de medições da cabeça (leia mais abaixo).

“Percebemos que existem cada vez mais estudos que tentam relacionar traços faciais com comportamentos e, o que é mais preocupante, dão explicações adaptacionistas para a tese”, afirma o antropólogo físico argentino Rolando González-José, do Centro Nacional Patagônico de Puerto Madryn. No meio do ano passado, ele se surpreendeu com a circulação de um artigo publicado na revista especializada inglesa Proceeding of the Royal Society B. Intitulado “Mau até o osso: estrutura facial prediz comportamento antiético”, o estudo da Universidade de Wisconsin, em Milwaukee, defendia que a relação entre a largura e a altura do rosto estaria diretamente associada ao tipo de comportamento do indivíduo. De acordo com os autores, homens com rostos mais largos seriam menos éticos e mais violentos.
Os especialistas iam além. No artigo, afirmavam que a prevalência desse traço físico encontraria explicação na seleção natural. No processo evolutivo, as mulheres teriam preferido se reproduzir com homens de estrutura óssea larga, já que a característica indicava parceiros mais fortes e temidos. Os genes desses homens, portanto, teriam seguido adiante no processo evolutivo. “Afirmar que determinada face inspira medo ou tristeza não me incomoda, porque pode ser algo culturalmente imposto. Realmente preocupante é buscar uma base genética para a associação”, pondera González-José.
O polêmico estudo despertou no especialista a vontade de realizar medidas das estruturas faciais e testar a suposta correlação entre morfologia e comportamento. Para tanto, ele organizou um grupo de geneticistas e antropólogos da Argentina, do Brasil, do México e da Espanha. Depois de analisar mais de 5 mil indivíduos pertencentes a 94 grupos populacionais modernos distintos, os pesquisadores juntaram diversas evidências que colocam em xeque a validade e a veracidade das teorias adaptacionistas.
“Entre as populações que estudamos estavam grupos de prisioneiros da penitenciária do Distrito do México. Lá, tínhamos condenados por homicídio, por roubo e por outras faltas menores. Medimos a relação entre a largura e a altura do rosto e comparamos com uma amostra geral da população não carcerária do México. Vimos que não existe diferença na largura do rosto dos dois grupos”, afirma o antropólogo argentino. Os resultados do levantamento foram reunidos em artigo publicado na revista científica Plos ONE. A reportagem tentou contato com os responsáveis pelo estudo da Universidade de Wisconsin, mas não obteve resposta.

Determinismos 

 Uma das coordenadoras do estudo organizado por González-José, a geneticista brasileira Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que os resultados encontrados por seu grupo também contestam a ideia de existência de dimorfismo sexual, ou seja, de que há características físicas não sexuais marcadamente diferentes entre homens e mulheres capazes de conferir vantagens adaptativas na seleção intra e intersexual. “Testamos o índice reprodutivo de alguns grupos e constatamos que o tamanho da prole de homens de traços mais largos não diferiu dos de rosto mais fino. Além disso, não vimos um traço muito mais marcado em homens do que em mulheres”, reforça.
Para Bortolini, associar um comportamento tão complexo como a agressividade a uma medida simples de face é muito “temerário” e até “ridículo”. “Fazer isso no século 19, quando não se conhecia a complexidade da genética e do comportamento era uma coisa. Fazer isso hoje é outra, pois temos ferramentas para saber que, para fenótipos complexos, há um número enorme de genes interagindo com o ambiente e com fatores sociais e culturais.”
A geneticista argumenta, entretanto, que tão prejudicial quanto o determinismo biológico é o determinismo social, em que é depositado no ambiente toda a responsabilidade por moldar o caráter do indivíduo. “É devastador imaginar que a pessoa em um ambiente hostil necessariamente vai ser um criminoso. Se fosse assim, já poderíamos prender todos os filhos de marginais. E não é assim”, pondera.
Outro ponto crítico levantado por González-José é o próprio conceito de violência. Em outro estudo analisado por seu grupo, pesquisadores usaram como parâmetro para mensurar a agressividade a quantidade de cartões vermelhos que os jogadores de hóquei receberam na Liga Canadense. “A agressão no jogo pode ser uma estratégia esportiva. Se sou o último homem da defesa e o atacante está vindo para o gol, vou tentar pará-lo. E isso não tem nada a ver com a largura do meu rosto.”

Explicações
simplistas



Ao longo da história, o homem sempre buscou compreender a feição de seu próprio comportamento. Isso leva, muitas vezes, a teorias simplistas. “O problema é quando a ciência participa dessas explicações, porque há uma cota de responsabilidade social”, pondera o antropólogo físico Rolando González-José. Segundo ele, as sociedades humanas têm a capacidade extremamente dinâmica para depositar medo e estigma em determinado grupo populacional. “Depois do atentado às Torres Gêmeas em Nova York, qualquer pessoa com turbante passou a ser vista como perigosa, inclusive os cidadãos indianos e hindus, que não têm nada a ver com o islamismo”, menciona o antropólogo.

Um dos exemplos mais conhecidos sobre a participação de cientistas na divulgação de explicações equivocadas sobre o comportamento humano é a frenologia, teoria desenvolvida pelo médico alemão Franz Joseph Gall no início do século 19. Gall dividiu o crânio em 27 regiões, cada uma associada a supostos traços de personalidade. Dessa forma, estabelecia-se que a moral e os sentidos intelectuais de uma pessoa eram inatos e dependiam da sobressalência de determinada parte do crânio. No início do século 20, entretanto, tais correntes teóricas começaram a ser contestadas com mais força.

De acordo com Hilton P. Silva, bioantropólogo da Universidade Federal do Pará (UFPA), as investigações sobre a diversidade humana datam da época dos grandes descobrimentos, período em que a Europa entrou em contato com uma grande diversidade de tipos humanos. “A noção de raças humanas associadas às ideias racistas, algumas das quais, infelizmente, perduram até hoje, aparece no século 19, no livro Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de Conde de Gobineau.

Colonialismo
 

 Silva diz que essas ideias estavam normalmente associadas às diferenças entre “brancos” (europeus, principalmente do Norte), “negros” (principalmente africanos escravizados e seus descendentes), “amarelos” (que incluiriam todos os asiáticos) e “peles vermelhas” (ameríndios). O objetivo principal da classificação era estabelecer uma hierarquia de superioridade biológica e cultural dos brancos para sustentar “cientificamente” os domínios coloniais. O trabalho de antropólogos e outros cientistas sociais foi fundamental para mostrar como a tentativa de classificar povos como mais ou menos evoluídos era absurda.

Para Claiton Bau, especialista em genética psiquiátrica da UFRGS e também autor do estudo iniciado por González-José, o bom da ciência é que os pesquisadores estão sempre se autocontrolando para evitar posições estigmatizadoras. “No caso do cérebro, por exemplo, o importante não é o formato, mas a função cognitiva desempenhada em uma região”, ressalta. 

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