domingo, 19 de maio de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Pela janela do tempo‏

Vasculho de minha janela o que se aglomera aos meus olhos. Incomodamente


Estado de Minas: 19/05/2013 

Acabo de sair do restaurante deste hotel em Belém e vejo, numa sala ao lado, a fotografia de como era o Hotel Regente. Transcrita na parede, uma carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, falando do que via aqui em 1927, quando ele tinha 34 anos e fez intrépida viagem pela Amazônia. Diz o texto:

“(...) Porém me conquistou mesmo a ponto de ficar doendo no meu desejo, só Belém me conquistou assim. Meu único ideal, de agora em diante, é passar uns meses morando no Grande Hotel de Belém. O direito de sentar naquela terrasse em frente das mangueiras tapando o Teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando um sorvete de cupuaçu, de açaí, você que conhece o mundo, conhece coisa melhor que isso, Manu? Me parece impossível. Olha que tenho visto bem as coisas estupendas. Vi o Rio e todas as suas horas e lugares, vi a Tijuca e Santa Teresa de você, vi a queda da Serra de Santos, vi a tarde de sinos em Ouro Preto e vejo agorinha mesmo a manhã mais linda do Amazonas. Nada disso que lembro com saudades e que me extasia sempre ver, nada desejo rever com uma precisão absoluta fatalizada de meu organismo inteirinho (...)

Quero Belém como se quer um amor. É inconcebível o amor que Belém me despertou em mim. E como já falei, sentar de linho branco depois da chuva na terrasse do Grande Hotel e tragar o sorvete, sem vontade, só para agir (...)”.

Ao lado desse texto está o retrato de como era o Grande Hotel, demolido em 1970 e substituído pelo Hotel Regente. Copio o texto, subo para meu quarto e olho pela janela a Belém de hoje. Ouço, antes de abrir a janela, um rumorejar constante como se um monstro estivesse passando continuamente do lado de fora: são os carros, caminhões e ônibus produzindo um ruído incômodo. É a selva da cidade. Seus motores querem me devorar.

Abro a cortina. Vejo um conglomerado, um ajuntamento. “Uma coisa é um país/ outra um ajuntamento” – constatei há quase 40 anos. Primeiro, descubro uma casa simples, fechada, porque abandonada. É a velha Belém que morre. Ou resiste. Ao lado, um edifício altíssimo com varandas, onde uma mãe brinca com uma criança. Numa rua transversal, um daqueles casarões de dois andares, como os que ainda existem em São Luis. Também abandonado.

Vasculho de minha janela o que se aglomera aos meus olhos. Incomodamente. Entre quintais e telhados, vejo duas casas que devem ter sido de pessoas ricas. Têm varandas, têm aquelas janelas altas, têm algo da belle époque. Desconfio que se tornaram escritório de firma, pois há vários carros estacionados em seus pátios.

Ao meu lado, um edifício horrível: Crowne Plaza. Parece uma prisão, mas é um hotel abaulado com vidros, modo como a pós-modernidade pensa ser criativa. Do outro lado, outro edifício feio, escuro, com faixas brancas. Mas o que destaco, entre mangueiras que sombreiam a cidade, são as cúpulas de algumas residências que sobraram da devastação imobiliária. Há algo de esquecimento e de paz nessas construções.

Mas os inóspitos edifícios continuam se erguendo aos meus olhos. Quem estuda a história da arquitetura moderna, passado o primeiro encantamento juvenil, constata entristecido como eram autoritários Corbisier, Adolf Loos e outros. Queriam banir ditatorialmente a “ornamentação”. Deu no que deu. Estamos empilhando edifícios, e a isso chamamos de civilização. Um entulho de formas e pulsões.

Fecho a janela (e a crônica). Passo pelo Teatro da Paz, que hoje dificilmente se vê. Lembro-me que assisti ao Círio de Nazaré aqui, há uns 30 anos. Tomo o rumo do Mercado Ver o Peso e chego às docas – a reinvenção do passado feita pelo arquiteto Paulo Chaves. O passado não tem que ser jogado fora. Ele dá sentido ao presente e ao futuro. Mais uma vez, me assento nesse porto reinventado e olho o mar. O mar, não, os imensos rios amazônicos à minha frente. Faço o ritual previsto. Como um pato ao tucupi, depois um sorvete de cupuaçu e castanha- do-Pará. E me ponho a contemplar as nuvens que circulam pelo horizonte.

E começo a escrever uma crônica sobre a imponderável história natural das nuvens.

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