domingo, 9 de junho de 2013

Mostra revê lado político de Keith Haring

folha de são paulo
SILAS MARTÍ
EM PARIS

Quando Keith Haring mostrou, em 1982, uma animação num telão da Times Square, em Nova York, deixou de vez o underground. Enquanto sua obra já dominava as galerias do metrô de Manhattan, seus bonequinhos projetados do alto de um prédio chancelavam uma cultura nascida às margens.
De grafiteiro rebelde a um dos ícones da arte do século 20, Haring tem a trajetória Ðem especial sua dimensão política -- esmiuçada agora na maior retrospectiva já dedicada ao artista, em cartaz até agosto no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris.
Naquele desenho da Times Square, Haring, que morreu em decorrência da Aids aos 31 anos, em 1990, mostrava um bonequinho apunhalando outro com uma cruz, cavando na barriga dele um buraco atravessado depois por cachorros saltitantes.
Mesmo que a cena pareça grotesca, nada na obra de Haring assusta. Seu trabalho resumiu temas complexos a traços simples e inconfundíveis --bonequinhos radiantes massacrados pelo capitalismo, dogmas religiosos, o racismo, o mal da Aids e até mesmo pela ameaça nuclear.
Divulgação
Tela de Keith Haring que critica o capitalismo; a obra faz parte da retrospectiva do artista que está em cartaz no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris
Tela de Keith Haring que critica o capitalismo; a obra está em exposição no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris
É esse lado militante, e ao mesmo tempo irônico, de Haring que domina o apanhado vertiginoso, com cerca de 200 trabalhos, agora em Paris.
Não há grande ousadia na distribuição das peças, nem invencionices por parte da curadoria, mas vale para entender que Haring foi além do grafite, embora tenha aplicado uma estética de rua a quase tudo o que fez, de animações a grandes esculturas.
Nas primeiras salas da mostra, aliás, Haring centra fogo no capitalismo americano e seus desdobramentos bélicos sem poupar agressividade. Nada menos sutil, por exemplo, que seu homem com uma cabeça de tanque de guerra e membro ereto queimando notas de dólar.
Símbolos da cultura pop, frutos desse mesmo capitalismo, também são subvertidos. Num dos quadros, Andy Warhol, seu colega e principal padrinho na rinha das artes plásticas, é fundido à figura de Mickey Mouse num grande rótulo de Coca-Cola.
Haring também transformou em itens de consumo alguns símbolos mundiais da história da arte, de um sarcófago egípcio com uma estampa pornográfica ao Davi de Michelangelo com uma cabeleira verde como os dólares.
MONSTRO E APARTHEID
Mais perto do fim da vida, Haring deixou de lado a crítica à economia Ðaté porque também encontrou sucesso comercial e abriu uma loja em 1985Ð e se debruçou sobre a questão do racismo e a Aids.
Depois que o grafiteiro negro Michael Stewart morreu num confronto com a polícia, Haring fez uma tela em sua homenagem em que aproveitou para criticar também o apartheid na África do Sul.
Quando foi diagnosticado com o vírus da Aids, que representava nas telas como um monstro pegajoso, Haring se tornou mais introspectivo.
Nessa fase, está um de seus raros autorretratos e, por último, a imagem de que a vida continua --um esqueleto que urina sobre flores crescendo.
Documentário revela grafite do artista na Bahia
EM PARIS
Entre 1984 e 1988, Keith Haring alternou a vida baladeira em Nova York com temporadas na casa do amigo Kenny Scharf em Serra Grande, na Bahia. Lá, ele fez uma série de murais nas paredes e no chão da casa de praia.
Um documentário dos brasileiros Guto Barra e Gisela Matta, que estreou na mostra do artista agora em Paris, registrou no ano passado a restauração de um desses trabalhos do artista, quase apagado no chão de uma cabana.
Quem fez o restauro foi o também artista Scharf, melhor amigo de Haring.
"Ele sabia como era o traço e estava lá quando o Keith fez o original", diz Barra. "Essa restauração teve um valor sentimental, feita por uma pessoa com intimidade com ele."

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