domingo, 9 de junho de 2013

Nascer e outros três poemas

folha de são paulo
ARMANDO FREITAS FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

SOBRE OS POEMAS Os textos aqui publicados integram o livro com o qual Armando Freitas Filho comemora 50 anos de poesia. "Dever", que reúne poemas escritos entre 2007 e 2012, tem lançamento previsto para julho, pela Companhia das Letras.

NASCER
Casta, casa, criança.
A primeira se esmerava
em palavras castiças, a segunda
se erguia a partir dessas
legendas, a terceira saía
para o jardim domesticado
à tesoura e vento medido.
A revelação rompeu contra
os santarrões, e o limpo voo
da cegonha caiu abatido pelas pedras
do palavreado de carregação:
"Não. Se nasce nas coxas
entre as pernas e o sangue
da mãe, partida para parir".
No mastro do quarador
com canivete em punho
o ano da revelação foi gravado --
trêmulo-- e o jardim
se encrespou de encontro
à casa, a casta perdeu
o lustro, a criança morreu.
Atravessou a tarde ao tempo
fora da casa, da casta, expulso
sem querer voltar, misturando
nojo, ódio, a carne de todos
na máquina de moer/doer
pingando no chão sujo e úmido
da cozinha, do banheiro, do quarto.
Largado no cimento, de macacão
recendendo a sabonete Gessy
o negro criado sorria vitorioso
no calor: pés descalços, calos
viril, de peito aberto, e mãos
e boca de hálito diferente:
Ubirajara Alberto Gonçalves, dixit.

AR DE FAMÍLIA
Só sei ser íntimo ou não sei ser.
O que escrevo me ameaça de tão perto.
Amassa mãe, pai, filhos, mulheres
os de sangue símil, os de romance
os de tinta de impressão, de árvore
venosa de folhas variáveis no vento
das estações, no ferido almofariz
com o mesmo pilão de pedra
sem lavar, e entre uma socada e outra
o silêncio do punho fechado.

MARCAS DA MÃE
O primeiro prato-feito
não admitia dúvida:
tinha divisões, onde
cada porção se punha
certa e definitiva.
O punhado de arroz
a colher e meia de feijão
a cor de legume medido
a carne cortada em cubos
contados. Depois, no prato
raso do mesmo jogo
a fatia certeira de queijo
e de doce acabando juntos.
Mais tarde, na louça adulta
e anônima, a mesma mão
destinada, dispunha
sem engano, a comida.
Nem mais, nem menos
mas com um tempero oculto
um veneno de mentira:
o que era antes interdito
à criança se permitia
ao menino que não crescia.
Agora, sem sua certeza
me sirvo hesitante:
o que corto, o que ponho
ora sobra, ora falta
e não sei, exatamente
o que me alimenta ou me mata.

TRANSITIVO
Só o pai gosta de você.
Amor automático igual
ao sangue que corre
para não escorrer, só
o pai sente quando
você sai sem abrigo.
Só o pai sente o frio
só o pai, o homem, não.

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