sexta-feira, 7 de junho de 2013

"Tipos de Perturbação" Lydia Davis - Noemi Jaffe


Tipos de perturbação em novos 



contos


Por Noemi Jaffe | De São Paulo

DivulgaçãoLydia reúne a dúvida inaugural e a cética
O olhar infantil sobre o mundo enxerga as coisas como se pela primeira vez: uma visada curiosa, inaugural, de quem não vê funções, utilidade, relações, mas somente formas e novidade. Seria como ter o privilégio de ver algo como uma maçã, já na idade adulta, sem nunca tê-la visto antes. Por outro lado, o olhar irônico enxerga segundas intenções, desconfia e inverte os sentidos para criar subtextos e mensagens subliminares. A dúvida infantil mantém certa inocência diante do mundo e geralmente a expressa por meio de uma linguagem repetitiva e metafórica. Já o olhar irônico se vale de uma linguagem seca, disfarçadamente protocolar. Supostamente, esses dois recortes expressivos deveriam se opor e é difícil imaginar uma forma de conciliá-los. A poeta polonesa Wislawa Szymborska, ganhadora do Nobel de 1996, é um dos raros exemplos dessa fusão sempre tensa entre confiança e desconfiança. Mas Lydia Davis faz o mesmo mostrando ao leitor que, embora pareça impossível, o novo ainda existe em literatura. Seus contos em "Tipos de Perturbação" são, exatamente, tipos de perturbação como há muito não se lia. Afinal, como reunir, na linguagem e no pensamento, a dúvida inaugural e a dúvida cética?
Sobre uma amiga com quem a narradora não consegue mais manter relações, diz o conto "Esclarecida": "Na época, não me incomodava que ela não fosse esclarecida, talvez porque eu mesma não fosse esclarecida. Acho que hoje sou mais esclarecida, e certamente mais do que ela, apesar de não ser muito esclarecido de minha parte dizer isso". Repetições entre infantis e melancólicas, surpresas e irônicas, sobre a amizade e o tempo, sem nunca mencioná-los diretamente, mas sempre a partir de um viés oblíquo, que deixa o leitor em suspenso sobre seu significado. O mundo do "bom gosto", os "reality shows", o consumo, o casamento padrão são todos ridicularizados por uma narrativa pretensamente científica, distante, mas que consegue atingir o alvo com precisão.
No conto "Com Sessenta Centavos", por exemplo, o narrador acaba chegando à conclusão de que, já que ele, ao tomar um café, também está alugando a xícara, o pires, o creme, a mesinha, os bancos, o ar condicionado, a luz, a vista e a companhia das outras pessoas, até que 60 centavos é barato. Em 15 linhas, um resumo inesquecível sobre o "Fetichismo da Mercadoria". Por outro lado, em "Coisas que Descobrimos a Respeito do Bebê", lemos o espanto e a emoção diante da criança: "Como ele é curioso, no limite de sua compreensão; como é confiante, no limite de seu conhecimento; como é habilidoso, no limite de sua competência; como impõe suas necessidades, no limite de sua força". Em "Distraída", a personagem pensa em coisas simples, sobre como é gostoso abrir a porta para um gato entrar, o que nos faz pensar sobre como é boa a condição sublime da própria distração.
Além de tudo, Lydia Davis ainda se apropria brilhantemente de recursos kafkianos, como o distanciamento burocrático, a visão científica e perversa do real, para iluminá-lo e criticá-lo. Seu conto "Kafka Prepara o Jantar" é uma das melhores definições da literatura do autor.
Para fazer a crítica de Lydia Davis, só é possível usar a ridícula expressão "é uma das melhores". Mas não há como escapar. Largue tudo e vá ler "Tipos de Perturbação".

"Tipos de Perturbação"

Lydia Davis. Trad.: Branca Vianna. Companhia das Letras, 256 págs, R$ 41,00 / AA+
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco


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