quinta-feira, 25 de julho de 2013

Pasquale Cipro Neto

folha de são paulo
'Ide e fazei discípulos...'
Ninguém morre por estudar formas linguísticas que não se usam no dia a dia, mas ocorrem em outros registros
O lema da Jornada Mundial da Juventude 2013 é "Ide e fazei discípulos entre todas as nações" (Mateus, 28, 19). Quero trocar dois dedos de prosa sobre as formas verbais "ide", "fazei" e análogas, hoje fora de uso na língua do dia a dia, mas largamente encontradas nos textos literários clássicos (portugueses e brasileiros) e na literatura religiosa.
Chama-me a atenção o contraste entre o lema da JMJ e o que boa parte da parte brasileira dessa mesma juventude tem encontrado na sala de aula. Alguns "professores" andam dizendo a seus pobres alunos que estudar a língua clássica é coisa de opressores, é manifestação de preconceito etc. Quanta bobagem!
Como bem dizem os realmente antenados com a modernidade linguística, o estudo sério NÃO deve ignorar o que se pratica no dia a dia ou o que se registra nas diversas variedades linguísticas, assim como NÃO pode deixar de abordar as variedades clássicas, formais etc. Isso sim é dar ao estudante um guarda-roupa linguístico pleno, que lhe permita compreender sobretudo as modalidades da língua com as quais ele tenha pouca ou nenhuma familiaridade.
Para ilustrar o que digo, relembro uma questão do vestibular da Unesp (Universidade Estadual Paulista). Baseada num fragmento de Vieira, a banca pediu aos candidatos que apontassem a frase em que o pregador se dirige diretamente ao público. O enunciado deixa claro que só há uma frase, formada por apenas uma palavra, a flexão verbal "reparai".
Como o índice de acerto foi baixíssimo, deduz-se que poucos candidatos entenderam o significado de "reparai", que nada mais é do que a segunda pessoa do plural (vós) do imperativo afirmativo de "reparar". Se Vieira tivesse empregado a terceira do plural, teríamos "reparem".
O que nos revela o baixíssimo índice de acerto? Temos algumas hipóteses: a) boa parte dos professores não soube ensinar o imperativo (mandou "decorar" a tabela de formação, mas não explicou o uso); b) boa parte dos professores explicou direito, mas a maior parte dos alunos não entendeu ou não deu importância etc.; c) boa parte dos professores simplesmente ignorou o assunto. Poderíamos pensar também numa alternativa "d", em que se afirmaria que pelo menos duas das alternativas anteriores são corretas.
O frouxo argumento de que a falta de uso na língua do dia a dia não justifica o ensino desse tipo de flexão verbal pode ser desmontado com o lema (bíblico) da JMJ, com um poema modernista, como "Verbo Crackar", de Oswald de Andrade, ou com uma canção popular, como "Tempo Rei", de Gilberto Gil. Nos três casos, empregam-se formas da segunda do plural (vós) do imperativo afirmativo. Em "Tempo Rei", Gil emprega "transformai", "socorrei" e "ensinai", que resultam da eliminação do "s" final da forma correspondente do presente do indicativo.
Voltando ao lema da JMJ ("Ide e fazei..."), temos de novo a segunda do plural do imperativo afirmativo de "ir" e "fazer", respectivamente: "ide" resulta da eliminação do "s" de "ides" (de "vós ides", segunda do plural do presente do indicativo); "fazei" segue o mesmo processo (de "vós fazeis" se chega a "fazei").
No poema de Oswald, encontra-se a forma "sede" (em "sede trouxas"), que é da segunda do plural do imperativo afirmativo de "ser". Trata-se de uma das duas únicas exceções registradas na formação do imperativo. A outra é "sê", da segunda do singular do mesmo verbo "ser" ("Para ser grande, sê inteiro...", escreveu Fernando Pessoa).
Ninguém morre por aprender e estudar formas linguísticas que não se usam no dia a dia, mas ocorrem em outros registros linguísticos. Xô, preconceito! Xô! É isso.

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