sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Candido Mendes; Marisa Gandelman - Tendências/Debates

folha de são paulo
CANDIDO MENDES
TENDÊNCIAS/DEBATES
China, Índia e a globalização obsoleta
O vácuo na agenda entre a China e a Índia representa uma quase demissão dessas duas nações-continente na nova globalização
Este ano crítico de 2013 será marcado pelo epitáfio da Primavera Árabe, na desmoralização em que ora mergulha o Egito, com a prisão de Mohammed Mursi, contra todos os cânones mais elementares do Estado de Direito.
Desnecessário atentar-se ao colapso de qualquer progresso institucional na Líbia pós-Kadafi. E a Síria passou a ser um cenário devastado da nova guerra fria, num contraponto entre o Irã e o conluio ocidental das rebeldias no Oriente Médio.
É como se se removesse, de qualquer forma, todo esse protagonismo emergente na área, suscitado pelos primeiros conflitos tunisianos pela democracia.
Nesse contexto esvaziado, perguntar-se-ia pela dita nova globalização não hegemônica, na expectativa da tomada de cena pelos Brics. No seu centro, encontra-se a relação entre a China e a Índia e, de logo, a pergunta e o espanto: ambas controlam quase a metade da população mundial e continuam a se dar as costas?
Não se trata da mera demora na distribuição de possíveis e futuras áreas de influência. Mesmo porque ambas as nações-continente sempre se viram voltadas para a imensidade do seu interior, cujas culturas mal se abalam pelo progressismo ocidental ou pela modelagem contemporânea dos Estados-nação.
O peso nas suas próprias gravidades desvia o conflito das superpotências. Mas uma conferência de há poucos dias entre representantes de Estado de ambos os países mostra o quase vácuo da agenda China-Índia, numa quase demissão do que sejam esses papéis diante da nova globalização.
Esse quadro não admite vácuos nem sobretudo a tolerância com as velhas desestabilizações, suscetíveis de retomar o velho status quo das guerras frias, frente ao que seria o ganho histórico de nosso tempo, marcado pelo descarte da dominação ocidental.
Mas, ao mesmo tempo, a evitar esse enlace regressivo e fundamentalista do poder político com o religioso, tal como expresso pela Irmandade Muçulmana, no Egito. Ou uma prospectiva que começa a se delinear pela condenação do islã em Mianmar, em novo movimento de radicalismo budista, proscrevendo as minorias corâmicas no país.
Independentemente das vicissitudes do próprio e intrínseco progresso democrático, as duas nações-continente assentariam um marco, definitivamente não regressivo, no descarte das religiões de Estado, na prospectiva de nosso tempo.
E espanta o quanto os Estados Unidos, no seu apoio aos golpistas no Egito, descartam, em nome da "realpolitik", o seu apoio à dita cláusula pétrea de apoio aos Estados de Direito e aos governos legitimamente eleitos.
    MARISA GANDELMAN
    TENDÊNCIAS/DEBATES
    Significados, uma questão de poder
    Eis que, juntas, a Senhora Transparência e a colega Competição decidem submeter titulares de direitos autorais de música aos seus desejos
    O significado das palavras não é fixo no tempo e no espaço. O processo por meio do qual o senso comum atribui diferentes significados a elas é complexo e contínuo. Trata-se de uma obra em progresso.
    Recentemente, algumas palavras ganharam importância. De tão usadas, acabaram se separando de seus significados. Uma dessas palavras é "transparência".
    Lemos e ouvimos esse termo várias vezes por dia e parece que seu uso exaustivo tem a finalidade de reduzi-lo a algo com valor intrínseco. Quem não possui transparência se sente envergonhado, como se estivesse fora de moda.
    Assim, reduziu-se o sistema de gestão coletiva de direitos autorais a uma única questão: ser ou não ser transparente. Quem não é deve ser punido. Ficará sob a supervisão do Poder Executivo, embora o Executivo nada saiba sobre essa complexa atividade, nem defina o significado de "transparência", nem questione a compreensão e aplicação do termo pelo órgão de supervisão.
    Uma palavra vazia de significado utilizada à exaustão em um discurso também vazio de significado se transforma em dogma. Esse dogma justifica uma lei imposta de cima para baixo para forçar a estrutura existente a se comportar da maneira que uma nova lei determina ser transparente e eficiente. Justifica, mas não explica: por que passaria a ser transparente e eficiente?
    Eis que a Senhora Transparência vai ao encontro da colega Competição e, juntas, decidem submeter os criadores e demais titulares de direitos autorais de música aos seus poderes e desejos. É isso mesmo que os interessados querem?
    Discurso vazio, ou conversa fiada. No regime associativo, é na associação que se define o justo e se produz significado para os termos.
    Há cerca de 150 anos, autores criaram as sociedades que operam no mundo inteiro a gestão coletiva de direitos autorais. Desde então, desenvolveu-se inteligência para organizar os dados relativos às obras e titulares sem os quais não é possível monitorar seu uso.
    As sociedades de gestão coletiva pertencem aos autores e demais titulares de direitos autorais, portanto devem ser supervisionadas por eles. Os titulares devem se organizar de acordo com os estatutos de suas sociedades e formar um corpo de supervisão, eleito, que aponte o corpo operacional. Os titulares podem alterar livremente os estatutos das associações para que reflitam o significado que querem dar ao termo transparência e a outros termos que dão qualidade à gestão.
    Assim se faz no mundo inteiro, na busca de formas para oferecer uma gestão de qualidade por custos menores, conforme definir o dono do negócio, desde que ele esteja disposto a participar da construção dos significados dos termos que guiam o funcionamento da organização.
    Essa possibilidade jamais foi debatida aqui. Não há participação nem espaço para o diálogo. Há apenas um pouco mais do mesmo.
    O Senado Federal, com aprovação da Câmara dos Deputados, enviou para a sanção presidencial um projeto de lei que não tem indícios de que vá entregar aquilo que critica faltar no atual sistema, especialmente a tão famosa "transparência". Mais uma cena do velho jogo político do governo brasileiro, que carece de significado e conteúdo, que se alimenta de si mesmo e vive em função da própria sobrevivência.
    As consequências imediatas da votação sem debate e sem transparência parecem óbvias. O poder passa das mãos dos que hoje dirigem as associações que integram o Ecad para as mãos daqueles que estiveram ao lado dos políticos responsáveis pela votação em tempo recorde e que antecipadamente transferiram para o Executivo os poderes conquistados nesse processo.
    Transferência de poder e autoridade também vazia de conteúdo, uma vez que não dominam, ou nem sequer conhecem, a complexidade da gestão coletiva. Tanto é que proíbem a licença em branco, consagrada no mundo inteiro, e determinam o uso de novos tipos de licenças mais custosas.
    Sociedades de autores se dedicam ao desenvolvimento de ferramentas para diminuir os custos de transação e promover economia de escala. O caminho adotado pelo projeto de lei promove a mudança do controle da estrutura para o Poder Executivo, porém não propõe inovação em benefício dos criadores. Ao contrário, propõe mudanças que tornam a operação mais custosa, restringe os direitos dos titulares e sugerem critérios de licença que resultarão excludentes.

      Nenhum comentário:

      Postar um comentário