domingo, 18 de agosto de 2013

Mulheres já são maioria entre médicos com menos de 29 anos - Claudia Collucci

folha de são paulo
Dois estudos inéditos da USP mostram que profissão passa por um processo de feminização
Elas dominam campos como endocrinologia e dermatologia, mas, no total de médicos, homens são maioria
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULOA medicina brasileira está se transformando numa profissão majoritariamente feminina. A tendência começou em 2006 e se consolidou a partir de 2008. Em 2011, 54% dos 14.634 médicos formados no país foram mulheres.
Entre os alunos que ingressaram em cursos de medicina em 2011, as mulheres representaram 56% do total, indicando que a participação delas só tende a aumentar.
Os dados vêm de dois trabalhos inéditos da USP, que analisaram bancos de dados do CFM (Conselho Federal de Medicina) e do Censo da Educação Superior do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).
No total de médicos em atividade no país, os homens ainda predominam (58,7%).
Mas entre os profissionais mais jovens (abaixo de 29 anos), as mulheres já são maioria (53,3%).
Elas dominam áreas como dermatologia (72,7%), pediatria (70%), endocrinologia e genética (64%), mas ainda são minoria em especialidades como urologia (1,2%), ortopedia (5%) e nas áreas cirúrgicas em geral.
Na opinião dos especialistas, o perfil demográfico da medicina no país, historicamente centrado na figura masculina, passa por uma transformação jamais vista.
Para o anestesista José Otávio Auler Júnior, diretor interino da Faculdade de Medicina da USP, a inversão tem razões culturais e de mercado.
"Os homens têm preferido profissões que lhes deem mais dinheiro a curto prazo, como a área financeira, business'. Já a mulher, que tem uma vocação natural para o cuidar, não tem essa preocupação", afirma.
Segundo ele, a mulher que decide ser médica tende a optar por especialidades da atenção primária, que a permitam conciliar a carreira com o casamento e os filhos. "Preferem áreas que tenham horários definidos ou em regime de trabalho parcial."
De acordo com a pediatra Patrícia Tempski, pesquisadora Faculdade de Medicina da USP, apesar do aumento do número de mulheres na medicina, ainda falta equidade de oportunidade numa profissão que por séculos foi tradicionalmente masculina.
"Quando têm filhos, elas produzem menos artigos científicos que seus colegas homens. Quando não os têm, produzem tanto quanto eles."
Como na maioria das profissões, as mulheres médicas tendem a receber salários mais baixos do que os homens em cargos semelhantes, apontam estudos internacionais.
Nos Estados Unidos, por exemplo, mulheres médicas ganham de 25% a 35% menos do que os seus colegas homens, dependendo da especialidade, seja por se dedicarem mais a cuidados primários, seja por trabalharem menos horas.
Segundo ela, a pressão por superação, aliada ao fato de terem mais empatia com o sofrimento do outro, tem deixado as mulheres mais estressadas já na faculdade.
SISTEMAS DE SAÚDE
O professor de medicina preventiva da USP Mario Scheffer, autor de um dos estudos que analisaram a feminização da medicina, diz que a mudança deve influenciar o modelo de cuidados de pacientes e a organização dos sistemas de saúde.
Estudos internacionais apontam que há vantagens e desvantagens nessa participação da mulher na medicina. Entre os pontos positivos está o fato de que ela tem mais preferência por especialidades básicas, como pediatria e ginecologia.
Também são elogiadas por discutirem mais os tratamentos com os pacientes e por serem menos afoitas do que os homens na incorporação de tecnologias desnecessárias-- que encarem os sistemas.
Por outro lado, segundo Scheffer, as mulheres tendem a ter cargas horárias menores, menos vínculos de trabalho (o médico, além do consultório, tem, em média, outros três trabalhos), dificuldades em se fixar em áreas distantes e se aposentam antes dos homens.
    'Falta tempo para pensar em ser mãe'
    DE SÃO PAULO
    No curso de medicina, os colegas homens da pediatra Leina Zorzanelli já eram minoria, entre 30% e 40% de uma turma de 130 alunos. Quando entrou para a residência médica, ela viu o número cair ainda mais: só cinco em meio a 40 mulheres.
    Na segunda residência, em cardiopediatria, eram sete mulheres e um homem. E tem sido assim no ambiente profissional.
    "É muita mulher. Às vezes, é preciso ter um homem para contrabalançar as emoções", diz Leina, 31.
    Mas ela vê vantagens em trabalhar em equipes femininas. "As mulheres são certinhas, dedicadas, trabalham bem em grupo."
    O desafio, diz, é ter qualidade de vida em uma profissão exigente.
    "São seis anos de curso, depois residências, mestrado, doutorado. A gente não para", afirma a médica, que trabalha no InCor.
    Casada com um cirurgião cardíaco, ela diz que planeja ser mãe. "Às vezes, falta tempo até para pensar nisso."
    PIONEIRISMO
    Foi para se dedicar à carreira médica que Angelita Gama, primeira mulher titular em cirurgia da USP, primeira aceita pela sociedade americana de cirurgia e primeira premiada pela sociedade europeia de cirurgia, não teve filhos.
    "Naquela época, não tinha essas facilidades de hoje, de babá, creches. Quem se tornava mãe tinha de interromper a carreira", conta Angelita, graduada pela USP em 1957.
    Ela diz que, no início, sofreu "um pouco" de discriminação e comemora o fato de as mulheres terem conquistado espaço na medicina, inclusive em áreas cirúrgicas, ainda dominadas pelos homens.
    Eles representam hoje 80% em 13 das 53 especialidades, incluindo nove cirúrgicas. Na área de Angelita, cirurgia do aparelho digestivo, 91,4% dos especialistas são homens.
    "É uma área complexa, exige concentração e um tempo maior de estudo. Isso afasta as mulheres."
    Alunas têm qualidade de vida pior que a dos homens
    Mulheres lideram entre estudantes que se queixam de sonolência diurna
    Estudo com 3.000 alunos de 22 escolas médicas mostra que muitos estão exaustos emocionalmente
    DE SÃO PAULOAo mesmo tempo em que se tornam a maioria nos cursos de medicina, as mulheres também lideram outra posição nada animadora: são as que têm os piores indicadores de qualidade de vida.
    A medição vem do projeto Veras (Vida de Estudante e Residente da Área da Saúde), que teve início com estudo pioneiro em 2004 sobre qualidade de vida e ambiente de ensino do aluno de medicina.
    De lá para cá, mais três estudos foram feitos e todos eles chegaram às mesmas conclusões: os estudantes, especialmente as mulheres, apresentam altos níveis de privação do sono, têm muita sonolência diurna e estão exaustos emocionalmente.
    Dados preliminares do último estudo, de 2012, que envolveu cerca de 3.000 alunos de 22 escolas médicas brasileiras, serão apresentados nesta semana em congresso internacional em Praga.
    PRIVAÇÃO DE SONO
    "A mulher tem os piores indicadores em tudo. Até por ter essa característica do cuidar, ela sofre mais com essas coisas. O homem tem a capacidade de minimizar ou não enxergar", afirma a pediatra Patrícia Tempski, uma das coordenadoras do projeto Veras, que tem apoio da Capes, órgão do governo federal.
    A sonolência diurna foi uma queixa de 66% das mulheres e 54,8% dos homens.
    "A sonolência faz você diminuir o aprendizado e deixa a pessoa com menos disposição de lidar e enxergar o outro. Isso somado ao contato com a dor e o sofrimento a vai endurecendo, numa fase em que está se desabrochando para a vida."
    Segundo a médica, a razão principal da sonolência é que, além de o curso de medicina ser "puxado", o estudante quer continuar a ter vida fora da faculdade.
    "Eles passam muitas horas em redes sociais, vão para baladas, não têm tempo para exercícios físicos."
    Quase metade dos estudantes (45,4%) avaliados estão insatisfeitos com o curso. Afirmam que não aproveitam a vida como poderiam, não se alimentam bem e não cuidam da sua saúde.
    "São comuns os sentimentos de tristeza e desânimo, insatisfação com a vida afetiva e sexual, principalmente nas mulheres e nos estudantes do 3º e 4º anos", diz a pediatra.
    De acordo com Patrícia, a falta de tempo livre para estudo, lazer, relacionamentos e repouso foi colocada como um dos principais fatores de diminuição da qualidade de vida no curso de medicina.
      Na Europa, feminização reduziu número de médicos em atividade
      DE SÃO PAULOO aumento do número de mulheres na medicina não é um fenômeno só do Brasil. Nos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a proporção passou de 28,7% para 38,3% do total de médicos entre 1990 e 2005.
      Segundo Mario Scheffer, professor da USP, na década de 1990, países como Inglaterra, Irlanda e Noruega já contavam com mais mulheres em seus cursos de medicina. Nos anos 2000, as mulheres já eram a maioria entre os estudante de medicina nos EUA e no Canadá.
      A maior participação de mulheres na medicina tem sido apontada como fator de redução de médicos em atividade em países da Europa.
      A tendência por jornadas de trabalho parciais e uma vida profissional mais curta seriam algumas das razões.
      Estudos mostram também que as mulheres médicas podem conduzir com mais eficácia ações preventivas e se adequam mais facilmente ao funcionamento e à liderança de equipes multidisciplinares de saúde.

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