sábado, 30 de novembro de 2013

Arnaldo Viana - Os ausentes‏

Os ausentes - Arnaldo Viana
arnaldoviana.mg@diariosassociados.com.br

Estado de Minas: 30/11/2013




Vamos chamá-lo de Manoel. Profissional liberal, cinquentão. No começo, ia direto do emprego para casa. A mulher, dia sim dia não, estava na academia ou em visita à mãe, a amigas. As duas filhas, na faculdade. Sentia-se só. Aos poucos, traçou nova rotina até se acostumar a sair do trabalho e passar no botequim para um aperitivo, alguns copos de cerveja. Formou uma rede de amigos para falar de futebol, cinema, mulheres, profissões. Despedia-se não antes das 22h. As filhas se formaram e Manoel demorou a perceber que as meninas não mais frequentavam aulas noturnas.

“É mesmo. É certo que as encontrarei em casa quando sair do trabalho.” Passou no bar para bebericar apenas. Cumprimentou a turma, bebeu dois copos de cerveja e se despediu. Deixou os amigos espantados. “Virou camisolão de repente, cara?” Manoel não deu ouvidos à provocação, desceu a rua até o ponto de táxi. Chegou em casa antes das 20h. A mulher estava em um chá beneficente. As filhas, trancadas nos quartos. Provavelmente, com os dedos nas ferramentas das redes sociais. Tentou mais uma, duas, três vezes. Esteve com a mulher. As meninas, não.

Retomou à rotina do boteco. Os amigos festejaram cantando trecho de canção do compositor Adelino Moreira: “Boemia, aqui me tens de regresso e suplicante te peço a minha nova inscrição. Voltei pra rever os amigos que um dia eu deixei a chorar de alegria…”. Desenhou nos lábios um sorriso amarelado, pediu uma cerveja, uma dose de uísque sem gelo e brindou. Naquela noite, quando chegou em casa, surpreendeu a menina mais nova na cozinha. “Oi, filha, quase não te vejo. Nossos horários não combinam.” A resposta o gelou: “Você, cara, é um pai e um marido ausentes”.

Refeito do golpe, tentou argumentar: “Eu, ausente? Vocês, sim, são ausentes. Sempre trancadas em seus quartos, fazendo sei lá o quê”. A filha saiu apressada e Manoel foi para a cama. Entregou-se às lembranças. Puxou da memória cenas da infância, dos jantares em família. Todos à mesa. Os pais comentando as tarefas do dia e os acontecimentos quase inocentes que ainda abalavam aquela cidade interiorana; os filhos falando da escola, dos deveres, das rígidas normas de disciplina das professoras. Lembrou-se também da mudança para BH.

Dos jantares, a família não abriu mão, mesmo se um ou outro faltava à mesa por causa da agitação da capital e das distâncias entre escola, trabalho e casa. Até o dia em que o pai chegou na boleia da caminhonete de uma rede de lojas e desembarcou com o motorista carregando uma grande e pesada caixa. E apresentou o objeto à mulher e aos filhos: “Agora, temos televisão”. Sem perceber, a família foi aos poucos abandonando a mesa. Comia sentada no sofá, de olho nas imagens ainda mal definidas em preto e branco. Acabaram-se as conversas sobre o dia de cada um, as histórias, a convivência. Os rumos dos personagens da novela se tornaram apelo mais forte.

 Quando saiu de casa para se casar, Manoel prometeu que teria uma família como aquela que tivera antes da mudança para a capital, da compra da TV. Quando as meninas eram pequenas, conseguia mantê-las boa parte do tempo longe da TV. Foram crescendo e pedindo um computador, um celular, uma TV para o quarto. Os aparelhos foram se modernizando e as filhas, a mais velha agora com 24 anos e a mais nova com 22, trocando-os, como se muda de roupa. “É inevitável”, disse a mulher. Quando, um domingo qualquer, consegue reuni-las, com ou sem os namorados, para um almoço em família, ei-las, à mesa, cutucando as maquininhas.

Uma noite, no bar, os amigos não entenderam quando Manoel propôs um brinde: “A nós todos, pais e filhos ausentes”. E pediu outra rodada.

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