sábado, 30 de novembro de 2013

Ditadura das MPs - Marcel van Hattem

Ditadura das MPs 
 
Há muito, o Executivo ignora os requisitos de relevância e urgência para tocar assuntos de seu interesse no Congresso
Marcel van Hattem

Cientista político, jornalista e especialista do Instituto Millenium

Estado de Minas: 30/11/2013


As medidas provisórias (MPs) são debatidas desde 1988, quando inseridas na nova Constituição em substituição aos decretos-lei da ditadura. A maior dúvida sempre foi se as MPs seriam apenas instrumentos de delegação do poder de legislar do Parlamento ao Executivo, em nome de uma maior eficiência na tomada de decisões governamentais urgentes e relevantes, ou se o Congresso estaria simplesmente se abdicando da sua prerrogativa de legislar. Hoje, porém, as MPs fazem o Parlamento delegar ou abdicar não somente o seu poder legislativo, como também a sua própria função de caixa de ressonância da opinião pública nacional.

Entulhada de MPs – somente em 2013, 23 foram apresentadas –, a pauta do Congresso não anda. E o paradoxo está criado: em nome da eficiência na tomada de decisões, as medidas provisórias tornam a Câmara e o Senado ainda mais ineficientes. Tal círculo vicioso, retroalimentado pela inoperância de um Parlamento cada vez mais inexpressivo, torna-se especialmente nefasto por MPs utilizadas para abafar e encurtar ao máximo a discussão política no Congresso Nacional.

O caso, nos últimos anos, é muito sério e, a despeito do abuso escancarado da edição de MPs, esse tema específico não parece chamar a atenção. Seja pela delegação ou abdicação de poderes legislativos, as medidas provisórias passaram a significar a subjugação da própria norma constitucional aos caprichos do Executivo. Enquanto a Constituição exige, em seu artigo 62, relevância e urgência para justificar a edição de MPs, já há muito o Executivo ignora tais requisitos para tocar assuntos de seu interesse no Congresso. E, cada vez mais, também os de grande impacto político, frise-se.

A MP 621/2013, referente ao programa Mais médicos, assinada em 8 de julho de 2013 e aprovada pelo Congresso em 16 de outubro, é o exemplo mais recente dessa tendência. Em declaração à Câmara dos Deputados em 4 de setembro, o médico cubano residente no Brasil Carlos Rafael Jorge Jimenez revelou que colegas seus da ilha de Fidel Castro sabiam do programa já havia, pelo menos, um ano. Por que, então, o programa não foi discutido publicamente no Congresso brasileiro, pelo menos, desde então? E por que não por meio de lei ordinária, como conviria nesse caso?

Dada a repercussão que o programa gerou na sociedade logo que foi apresentado em discurso da presidente Dilma Rousseff em junho, não surpreende que ela tenha estrategicamente optado por assinar uma MP no mês seguinte. O conteúdo de sua proposta foi escondido do grande público por, no mínimo, um ano. E, quando apresentado, já era praticamente irreversível: antes de o Congresso poder avaliar o texto com cuidado, médicos estrangeiros já desembarcavam no país. Se por um lado a relevância do programa é passível de discussão, por outro, fica claro que o Executivo atrasou ao máximo sua apresentação, tornando a urgência constitucional uma desculpa para a apresentação tardia.

Jamais saberemos se a proposta seria igualmente aprovada se apresentada por lei ordinária, que possibilitaria um maior debate no Congresso. É evidente, contudo, que haveria mais tempo para a discussão pública. E tempo é o que mais abomina um Executivo que tem vocação para a tomada de decisões autoritárias, ou a elas já se acostumou. Instrumento de substituição aos decretos-lei da época da ditadura, as próprias MPs vêm contribuindo para tornar o Brasil uma ditadura das medidas provisórias.

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