sábado, 30 de novembro de 2013

Linguagem secreta do amor - Luciane Evans

Linguagem secreta do amor 
 
Antropóloga pesquisa dicionários do século 19 que dão significados às flores, que eram usadas nas relações afetivas brasileiras naquele século como um código de sigilo amoroso 

Luciane Evans

Estado de Minas: 30/11/2013


Da mulher que não pode se render àquela paixão, um botão de rosa-de-jericó. Para aquelas com peso na alma, um malmequer no cabelo. Ao homem traído, abacate. Àquela paixão arrebatadora, botão de cravo-carmesim. Olhando assim, essa ligação entre as flores e as relações afetivas pode não fazer sentido algum para os casais do século 21, que trocam mensagens instantâneas via Whats app, Viber ou via operadora de celular, compartilham vídeos e têm em mãos a liberdade de escolha e outras facilidades para expressar os sentimentos. No entanto, no século 19, quando o modelo de família patriarcal regia os namoros e casamentos, e não havia a tecnologia da qual dispomos hoje, as flores eram a linguagem secreta daqueles que viviam suas paixões em segredo.

Esse recorte romântico da história brasileira foi e ainda está sendo pesquisado pela antropóloga e pesquisadora Alessandra El Far, doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP), e revela muito de uma época em que o amor se mostrava, através da natureza, ou melhor, de frutos e flores, pano de fundo do romantismo do século 19. “ Quando comecei a fazer o meu doutorado, que defendi em 2002, fui atrás das obras que as pessoas liam no século 19. Ao contrário do que o senso comum pensa, de que havia uma população analfabeta que não lia, foi uma época de muita leitura, havia um mercado editorial significante e em desenvolvimento. Lia-se Machado de Assis e Aluísio de Azevedo, por exemplo. Havia ainda o interesse por gêneros literários que não existem mais hoje, como as narrativas de sensação e romances só para homens”, conta Alessandra, que atualmente é professora de antropologia no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Entre essas descobertas, a antropóloga esbarrou em um verdadeiro tesouro: os dicionários das flores. "Eram uma espécie de linguagem secreta de amor. Os nomes das flores viam em ordem alfabética. Não há autores, mas muitas versões. Cada flor tinha o seu significado para uma relação amorosa", destaca a pesquisadora, que depois de defender seu doutorado sobre a leitura do século 19, se dedicou por dois anos, de 2011 a 2013, ao estudo sobre esses dicionários, em um pós-doutorado, e contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Segundo ela, para entender a leitura dessas obras, que eram de publicação barata, foi preciso mergulhar fundo nos registros históricos para compreender as relações daquela época. “A popularização desse tipo de publicação no século 19 no Rio de Janeiro esteve intimamente ligada ao desenvolvimento urbano da corte. Foi nesse período que as moças, em particular as nascidas na burguesia urbana, começaram a frequentar os espaços públicos”, diz. As primeiras publicações do tipo tiveram origem na França, no próprio século 19. A versão mais antiga conhecida, e também a mais famosa, foi escrita por Madame Charlotte de Latour, em 1819. Várias edições foram traduzidas e adaptadas a partir dessa.

NO BRASIL O formato das edições variava bastante, indo desde as mais simples, de capa brochada, contendo apenas os verbetes e que somavam 50 a 70 páginas, até as ricamente ilustradas, de luxo, que traziam – além dos significados – jogos galantes, outras linguagens secretas baseadas no uso de leques, bengalas, pedras e cores, além de poemas que versavam sobre as flores. “Os leitores eram chamados de fiéis súditos de Cupido”. Entre os dois anos de pesquisa, Alessandra viajou para o Rio de Janeiro e para Portugal, onde se deteve no acervo da Biblioteca Nacional de Portugal. “Descobri que havia lá diversas edições, tanto cariocas quando portuguesas.”

Durante a primeira visita àquele país, em setembro de 2011, ela apresentou um trabalho sobre o dicionário das flores no Congresso Internacional Pluridisciplinar com o tema “Flowers/Fleurs/Flores”, realizado pelo Centro de História e Teoria das Ideias da Universidade Nova de Lisboa, que discutiu os diversos usos e significados das flores nos contextos filosófico, religioso, histórico e na literatura. “Depois de surgir na França, a linguagem foi traduzida para o português em Portugal, e só depois veio para o Brasil, com definições de A a Z .”
Em território brasileiro, esses dicionários foram adaptados às espécies brasileiras. “Chegaram aqui como flores, ervas, raízes e frutos. E, até chegar, foram se adaptando com a nossa linguagem.” O botão de cravo-carmesim, por exemplo, tem como mensagem “desejo ser feliz contigo”. “Se alguém enviasse ao outro um botão de rosa encarnada queria dizer: ‘Meus olhos veem a ti’. Flores brancas, afeição. Se enviasse cenoura, estava dizendo que toda a relação era falsa. Um abacate, por exemplo, poderia significar uma traição. Receber o fruto podia ser até uma denúncia de infidelidade”, comenta.

Flertes ocorriam em segredo

No século 19, os flertes ocorriam, segundo destaca Alessandra El Far, em segredo, “já que as relações afetivas eram proibidas e vigiadas pelos pais das moças.” Como forma de viver as paixões sem que ninguém descobrisse, os enamorados da época tinham essa linguagem para se comunicar. “Como os pais estavam sempre de olho, tudo era velado. Havia bilhetes, o menino do recado.” Essas coisas quase não existem mais, mas a pesquisadora destaca que algo disso foi passado pelas gerações seguintes. “Uma avó de uma amiga, de 95 anos, que faleceu na semana passada, me disse que se lembrava dos dicionários, que era algo bem comum na época", conta.

Na Biblioteca Nacional de Portugal, há dicionários disponíveis virtualmente, um deles de Lisboa, com data de 1869. As raízes ganham a definição de mistério. “Pelas raízes quizeram (SIC) os antigos que fossem os significados os segredos; porque assim se escondem no coração, como as raízes da terra, e assim deve estar coberta a raiz na terra, como o segredo no peito do homem”, diz o texto. “É romântico, mas por um lado é triste porque esses códigos mostram que as pessoas não tinham a liberdade de escolha para as suas relações”, avalia Alessandra.

A fim de entender bem como funcionavam essas relações, ela continua seu trabalho de pesquisadora. Artigos científicos sobre o tema serão publicados e, segundo ela, a ideia é escrever um livro sobre como se dava o namoro e o galanteio no século 19. “ Tudo isso é um pouco da nossa história. As pessoas liam muito no século 19, pensaram e agiram de uma maneira que foi se perdendo de vista. Essas pesquisas nos ajudam a perceber o que perdemos”, conclui. 

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