terça-feira, 5 de novembro de 2013

Maria Esther Maciel-Um pouco de loucura‏

Estado de Minas: 05/11/2013 







De Cecília, só sei uma coisa: tinha tudo para ser louca, mas não era. Ou melhor, sua loucura não tinha nada de óbvio, não era dessas que exigem remédios e cuidados diários. Era, digamos, uma loucura quase lúcida. Ou sábia.

Conheci-a quando vim morar em Belo Horizonte. E se falo nela hoje é porque me lembrei de seu aniversário. Creio que completa, este mês, 49 anos. Uma data que, para ela, deve ser mais importante do que os 50 que fará daqui a um ano. Explico: Cecília acreditava (será que ainda acredita?) no poder dos setênios, ou seja, dos ciclos de sete anos na vida de uma pessoa. Para ela, aos 7, 21, 35, 42, 49 e, assim por diante, experimentamos grandes guinadas, entramos em outros rumos e contextos. Para isso, ela evocava a teoria do austríaco Rudolf Steiner (1861–1925), criador da antroposofia, que ela admirava muito na época. Quando fiz 21 anos, por exemplo, Cecília me disse: “É hora de você entrar em estado de desencontro com o mundo”. Dito e feito. Só não sei se aos 28 encontrei o rumo certo, como me foi dito que, provavelmente, aconteceria.

Cecília sempre me surpreendia com seu jeito diferente. Ela gostava, por exemplo, de fazer listas. Certa vez, mostrou-me uma só com expressões cotidianas relacionadas a bichos, como “engolir sapos”, “levar gato por lebre”, “picar a mula”, “tirar o cavalinho da chuva”, “é agora que a porca torce o rabo”, “cada macaco no seu galho”, “pagar o pato”, “memória de elefante”, “dormir com as galinhas”. Uma outra lista que fez foi a do que chamou de “peixes perplexos”. A princípio, não entendi a lógica da coisa, mas depois ela me explicou: “são os peixes que se assustam com a sujeira do mundo”. Entre eles, estavam a “truta”, o “peixe-lua”, o “cascudo”, o “badejo”, a “manjuba”, o “galhudo”, a “merluza” e a “viúva”. Mas a melhor, mesmo, foi a longa lista de cidades com nomes curiosos que ela me mostrou numa tarde de junho, entre eles  “Bizarra”, “Barra do Choça”, “Amargosa”, “Carrasco Bonito”, “Arroio do Tigre”, “Breu Branco”, “Venha-Ver”, “Sonora” e “Olho d'Água do Borges”.

Outro caso interessante foi quando ela apareceu lá em casa com febre, meio prostrada. Preocupei-me com seu estado e quis dar-lhe um remédio. Ela recusou ajuda, com o argumento: “Uma vez li que Deus se manifesta nos nossos estados febris. Vou aproveitar que tenho febre para ver se isso acontece”. Ficou com febre por dois dias seguidos e, quando perguntei se tinha valido a pena não tomar remédio, respondeu, séria: “Não conto. É segredo.”

Convivi com Cecília durante uns três anos e meio. Depois, ela foi embora para a Dinamarca, onde seu pai – que era neto de dinamarqueses – vivia. Lá, pelo que consta numa das últimas cartas que me enviou, ela se casou com um pianista chamado Lars Olsen, viúvo e 22 anos mais velho que ela. Não sei se continua morando em Copenhague com ele. Nem se tiveram filhos.

Espero que Cecília continue com sua loucura quase lúcida, pois isso sempre foi a sua melhor virtude. E que não tenha perdido o hábito de fazer listas imprevisíveis, como a das frutas amargas, das doenças sem remédio possível, dos nomes insanos dados a cachorros e dos lugares para se visitar nos dias ímpares da semana. 

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