terça-feira, 5 de novembro de 2013

Médicos colaboram com tortura em Guantánamo, acusa relatório

O Globo - 05/11/2013

Estudo denuncia violações de ética no tratamento a acusados de terrorismo



ISABEL DE LUCA
Correspondente
ideluca@oglobo.com.br

-NOVA YORK- Médicos, psicólogos e enfermeiros violaram a ética profissional ao participarem da tortura de suspeitos de terrorismo mantidos em centros de detenção militares americanos depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, diz um estudo divulgado ontem pelo Instituto de Medicina como Profissão (IMAP, na sigla em inglês), ligado à Universidade de Columbia, e pela fundação internacional Open Society. De acordo com o documento, as práticas — classificadas no texto como “um tratamento cruel, desumano e degradante” — teriam ocorrido sob instrução do Departamento de Defesa e da CIA com o objetiv de coletar informação, em nome da segurança nacional. Embora as piores infrações sejam anteriores a 2005, elas continuariam acontecendo.

Intitulado “Ética abandonada: profissionalismo médico e abuso de detentos na guerra ao terror”, o estudo revela que profissionais da saúde a serviço das Forças Armadas e de agências de Inteligência conceberam e estiveram envolvidos em iniciativas como afogamento simulado, privação de sono e alimentação forçada de prisioneiros em greve de fome. Assinado por uma força-tarefa de 20 médicos, advogados, militares e profissionais de saúde pública, o documento pede que a Comissão de Informação do Senado dos EUA investigue o caso.

— Detentos de alto nível capturados e enviados a prisões americanas pelo mundo têm informações muito úteis ao Departamento de Defesa. Uma da desculpas dadas quando as primeiras notícias sobre esse tratamento antiético vieram a público, no fim de 2004, foi que os médicos deveriam funcionar como oficiais de segurança, ou seja, eles deveriam estar presentes em certos procedimentos e interrogações para prevenir que fosse feito algum mal aos detentos. Mas essa é só uma desculpa para envolvêlos.
Os profissionais de saúde realmente presenciavam essas torturas e eventualmente evitavam que complicações mais graves acontecessem — diz Gerald Thomson, professor emérito de Columbia e um dos autores do texto, que demandou três anos de trabalho.

Mais de cem detentos morreram em prisões militares americanas entre 2002 e 2005, sendo que 43 dessas mortes foram classificadas como homicídios. Segundo Thomson, o presidente Barack Obama repudiou a conduta quando tomou posse, em 2009, e as técnicas de interrogação com tortura foram interrompidas, mas é sabido que mais de cem detentos de Guantánamo, em Cuba, estavam em greve de fome nos últimos meses — e que cerca de 30 deles teriam sido alimentados contra a vontade por meio de tubos no nariz e no estômago, contrariando as leis da Associação Mundial de Medicina e da Associação Americana de Medicina.

— Está claro que os médicos estão envolvidos com as greves de fome que acontecem atualmente — ele afirma.

O estudo se baseou em entrevistas, documentos e registros secretos tornados públicos no início do governo Obama. Além de participar de interrogatórios, os profissionais da saúde quebraram o sigilo médico ao revelar detalhes sobre as condições físicas e psicológicas a agentes de segurança. O texto chama a atenção ainda para o fato de que eles se abstiveram de reportar o abuso de detentos.

— Nos debruçamos sobretudo sobre quatro memorandos do Departamento de Justiça, secretos até 2009. São documentos extensos que revelam que a CIA pediu que procedimentos como técnicas de interrogação, afogamento simulado e privação de sono fossem indicados como legais para os médicos — conta Thomson. — Eles juntavam a maior quantidade de informações médicas e psicológicas dos detentos para repassar aos agentes encarregados dos interrogatórios, que assim podiam conceber a “melhor” forma de tortura para cada caso.

SEM CASSAR LICENÇAS

O professor não acredita que os profissionais envolvidos no escândalo devam ter as licenças cassadas:

— É complicado; eles não estavam agindo por conta própria, estavam sendo instigados a participar dessas práticas, obedecendo ordens das Forças Armadas e das agências de Inteligência, relativas ao interrogatório de detentos e à forma como eles queriam que os médicos conduzissem as greves de fome. E, em segundo lugar, não sabemos os nomes desses médicos e psicólogos que conceberam e participaram desses métodos de interrogatório.

A ideia é que o estudo faça associações médicas e psicológicas reforçarem os padrões éticos de interrogatório e custódia de detentos.

— Isso nunca tinha acontecido na nossa História. É importante lembrar que essas vítimas de abusos não podem ser classificadas como prisioneiros de guerra segundo as leis internacionais das Convenções
de Genebra. É uma novidade para a nossa nação, e certamente a primeira vez que isso acontece na medicina americana. Então, esses abusos precisam ser entendidos, explicados. E alguma atitude
deve ser tomada — conclui Thomson.

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