sábado, 7 de dezembro de 2013

Rara chance de desvendar o Rio - WALTER SALLES

O Globo 07/12/2013


Filme dirigido por
Maria Augusta
Ramos atesta a
vitalidade do
documentário
brasileiro

Se existe uma crise
no cinema brasileiro,
ela não se encontra
no documentário.
Do mestre Eduardo
Coutinho aos primeiros filmes
de jovens realizadores,
diretores de diversas gerações
oferecem hoje um dos
retratos mais férteis e plurais
de uma sociedade. Não
é por acaso que documentários
brasileiros têm tido papel
predominante nos festivais
mais relevantes do gênero,
o que tem acontecido
mais raramente na ficção.

Dentro desse universo,
Maria Augusta Ramos vem
desenvolvendo um trabalho
de rara pertinência e acuidade.
Os ótimos “Justiça”
(2004) e “Juízo” (2007) levaram
a câmera para lugares
que a grande maioria dos
brasileiros desconhece: os
tribunais de Justiça do país.
“Morro dos Prazeres”, o novo
documentário de Maria Augusta
que estreou na semana
passada, aprofunda o desejo
de investigar aquilo que está
frequentemente na capa de
jornais, mas permanece parcialmente
desconhecido.
Exatamente um ano
após a instalação de uma
UPP (Unidade de Polícia
Pacificadora) no Morro
dos Prazeres, Maria Augusta
filmou o cotidiano
dessa comunidade de seis
mil habitantes por quatro
meses. É o retrato de uma
realidade em constante
mutação que o espectador
é convidado a mirar.


O filme acompanha personagens
fascinantes dos dois lados
da barreira durante esse
tempo dilatado. Magalhães,
vendedor de livros, que se torna
cada vez mais crítico da
ação da polícia no morro à medida
que os meses passam. Orlando,
carteiro e treinador do
time de futebol feminino, que
oscila entre a crítica
e a percepção
de que as
UPPs são uma
etapa de transição
necessária.
Capitão Odilon,
comandante da
UPP, que parece
estar frente a um
mundo de tarefas que, de tão
agudas, o ultrapassam. Policiais
femininas completam esse
quadro onde tudo desafia o
senso comum.

É desses dramas humanos e
não de teses preconcebidas
que é feita a matéria do filme.
Maria Augusta não mastiga o
que vê ou simplifica o universo
que focaliza. Desde o início
do filme, quando crianças ficcionalizam
um confronto entre
policiais e habitantes do
morro, entende-se que nada
aqui é o que aparenta ser à
primeira vista. Um personagem
é especialmente expressivo
dessa realidade: Brulaine,
uma adolescente que, em
um primeiro
momento, poderia
ser confundida
com
um rapaz. É só
quando Brulaine
confronta
uma juíza, num
momento em
que “Justiça” e
“Morro dos Prazeres” parecem
se fundir, que entendemos
a sua real identidade.


Essa capacidade de sugerir e
não de impor é uma das linhas
de força do cinema de Maria
Augusta Ramos. Ela não nos
convida a olhar pela janela, e
sim a fazer parte de uma paisagem
que é, para muitos, estrangeira.
Se “Morro dos
Prazeres” é tão revelador, é
também porque não pretende
exaurir o tema que
aborda. Cabe ao espectador
completar o filme. Nesse
sentido, Maria Augusta segue
a tradição de seus mestres
no cinema documental,
Johan van der Keuken e
Raymond Depardon.


Convidado a participar de
uma intervenção de artistas
na Favela da Maré (onde
não há UPP), o artista plástico
Marcos Chaves pendurou
uma frase numa passarela
da Avenida Brasil que
dizia: “amarécomplexo”. Para
quem quiser ir além das
matérias sensacionalistas e
entender um pouco mais da
cidade onde vive, “Morro
dos Prazeres” é uma rara
oportunidade. 


Walter Salles é diretor de
“Central do Brasil”, “Diários
de motoci

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