sábado, 29 de março de 2014

ARNALDO VIANA » 1964: o mamoeiro‏

ARNALDO VIANA » 1964: o mamoeiro 

A prisão não o assustou nem o surpreendeu. Sabia que cedo ou tarde seria apanhado 
 
ARNALDO VIANA
Estado de Minas: 29/03/2014




Tonhão era nome de luta. Moreno, forte. Diante de um copo de cerveja, na mesa daquela bar dos anos 1970, um olhar vago, indecifrável. Não estava ali. A mente vagava por paredes sujas e rabiscadas de celas congestionadas, por porões escuros e fedorentos. Caiu nas mãos da polícia da repressão em um dia qualquer, depois de uma reunião com os companheiros socialistas do MR-8, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro. O 8 lembrava o dia do ano de 1967 em que forças militares bolivianas prenderam Che Guevara, para assassiná-lo 24 horas depois.

A prisão não o assustou nem o surpreendeu. Sabia que cedo ou tarde seria apanhado. Enfrentou o pau de arara, as sessões de choques elétricos, a tortura psicológica. Sentiu a razão esvair-se. A emoção se concentrou no ódio ao golpe. Mas não se rendeu. Escondeu a certeza e falou do que não existia. Mas quem não falava ali poderia falar em outro lugar. E numa noite também qualquer saiu encapuzado, arrastado, e jogado no fundo de um camburão. Acordou no dia seguinte em um cubículo fétido de um quartel militar. E apanhou mais, muito mais nas mãos de profissionais da brutalidade. E se calou de vez. Já não sentia dor e nem sabia se ainda tinha lágrimas. Mas as tinha.

Um mês depois ganhou o pátio para o banho de sol. Reencontrou companheiros. Alguns de furtivos encontros em aparelhos clandestinos. Eram irmãos de batalha. De volta à cela, a solidão do cárcere, o sedentarismo. Resolveu o ócio com uma conversa rápida no pátio. Que tal uma horta? Proposta aprovada. Fez parte da comissão que foi ao oficial-diretor pedir autorização. “Sem ferramentas. Cavem com as mãos”, disse o militar. Não foi fácil. O esterco, encomendado a um dos sentinelas, custou caro, mas os canteiros ficaram bonitos. O dinheiro vinha do 8, por meio de raras visitas de parentes de um ou outro companheiro. Brotaram alface, couve, jiló, rúcula, tomate, pimenta malagueta, salsa, cebolinha…

Uma manhã, uma convocação. Todos ao pátio, perfilados diante da horta. Do meio da guarda saiu um tenente, espigado, botas engraxadas. Sem nem sequer olhar para baixo, subiu nos canteiros e ficou andando de um lado a outro ditando novas normas na prisão. Os tenros caules pareciam estalar sob as solas das botinas. Estalavam dentro dos cérebros prisioneiros. O rosto de Tonhão se contorceu um pouco quando juntou às recordações a lágrima descendo a face esquerda. Era quente como sangue. Nada na horta ficou de pé.

Lembranças, lembranças. De repente, os olhos de Tonhão se avivaram ali, naquela mesa de bar. Bebeu um gole da cerveja. Um sorriso quase imperceptível abriu-lhe os lábios. Pensou no saquinho de sementes que sobrara dos tantos que encomendara à guarda, a custo de muito dinheiro, para a horta pisoteada. Nem se lembrava mais de como conseguira o pequeno vaso que encheu de terra recolhida dos canteiros. Plantou. Os brotos romperam a terra. Era preciso sacrificar os mais fracos. Havia lugar só para um. Todas as manhãs, passava uma das mãos entre as grades e com um pequeno espelho, comprado de um dos sentinelas, lançava raios de sol sobre a planta para que ela cumprisse seu papel. Vieram as primeiras flores. Esperou os frutos, sem ansiedade, que vieram não muito grandes.

O doce da fruta trouxe-lhe paz, as folhas verdes reativaram a autoestima, o caule, as flores reorganizaram a razão. Já não havia medo. Por momentos, Tonhão chegou a esquecer a causa. Só por momentos. É que, de repente, entendeu que uma luta não se faz de ódio, mas de motivos. Uma manhã ainda qualquer, levado à sala do oficial-diretor, soube que seria libertado. Deixou o mamoeiro aos cuidados de um companheiro e ganhou a rua. E ali, naquela mesa de bar, a incerteza se ainda havia um mamoeiro na prisão. Engoliu o resto da cerveja e murmurou: “Era apenas um mamoeiro”. Levantou-se e caminhou. O 8 o esperava. A luta não podia parar.

Pergunta do Negão: Que perspectiva trazem ao país grupos que evocam décadas de exceção, incompreensão e truculência?. 

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