sábado, 28 de junho de 2014

A feira nossa de cada dia [Julio Bernardo]

Julio Bernardo, um dos mais ranzinzas blogueiros do setor gastronômico, reúne memórias de sua juventude e descreve a dura vida dos bucheiros


João Paulo
Estado de MInas: 28/06/2014


Ele tem cara de bravo. E não é só a cara: Julio Bernardo é o mais temido dos críticos de restaurantes do país       (Renato Parada/Divulgação)
Ele tem cara de bravo. E não é só a cara: Julio Bernardo é o mais temido dos críticos de restaurantes do país



Julio Bernardo tem orgulho de suas origens: ele é bucheiro. Para quem não sabe, essa é a ocupação de quem vende miúdos na feira. Julio tem linhagem, já que é filho de bucheiro. Cresceu na feira livre, conhece seus meandros, sua história, bastidores e personagens. Depois de enfrentar a banca de vender miúdos e frangos desde a adolescência, Julio Bernardo fez um pouco de tudo: foi DJ, chef de cozinha, dono de restaurante e hoje é o blogueiro mais implicante do país. Todos do mundinho gourmet torcem o nariz para ele, mas não deixam de ler o que ele escreve. Ele sabe que é temido. E gosta disso da forma mais cruel: não está nem aí para o que dizem dele. Continua pagando suas contas, passeando com seus cães e deixando a barba crescer.

Pois agora JB resolveu expandir seu público e está lançando o livro Dias de feira, uma coleção de pequenas memórias, com jeito de crônicas, que vão compondo sua história pessoal e de sua turma das feiras livres. No mundo dos feirantes, como acontece com todos, há de tudo: alegrias, tragédias, amor e sexo. Muda o cenário e surgem algumas características que fazem parte de um universo de gente que trabalha na rua, acorda de madrugada e gosta de beber durante o expediente (nos bares do entorno das feiras).

O livro é dividido em três partes. Começa apresentando o terreno, com “O circo ganha a rua”. No primeiro capítulo, hora a hora, o cenário vai ganhando vida, da organização do espaço ainda na madrugada até a hora da xepa. JB vai caracterizando, um a um, os tipos de consumidores e seus horários mais constantes. Mas fala também de sua turma, da necessidade de “comprar uma permissão” para trabalhar, das idas aos bares, do escambo que rola no negócio. Não ficam de fora os truques para roubar no peso e uma “receita” para revitalizar frango meio passado com tempero carregado.

Em seguida, vêm os personagens. Nas seções “Na feira” e “Bucheiros”, JB apresenta sua turma, sem segurar a mão. Elogia quando tem que elogiar, critica e denuncia quando é preciso. Mas tudo com o afeto de quem é do meio e sabe do que está falando. Para o ex-feirante, existem três tipos de vendedores: o desprezível, o técnico e o apaixonado. E, para explicar, conta a história do João do Feijão, que se recusava a cumprimentar freguês que consumia o carioquinha. “Um figuraça, o João”, elogia.

E tem muita gente na feira do autor: o Carlão, um militar linha-dura que não aceitava o filho gay; o Rubão, um fiscal que se deu mal com seus arrochos; e Aline e sua triste história de amor não realizada. Ele chega a teorizar sobre os tipos da feira: na história da alimentação, garante, “não há quem se pareça fisicamente tanto com o produto vendido como o ovo e o oveiro. Pode reparar. Um é a cara do outro”.

JB fecha seu livro com o epílogo “A xepa da história”, uma espécie “em busca do tempo perdido”, com certa melancolia, mas com realismo: “Sinceramente, não tenho a menor noção se meus dias de feira foram melhores ou piores que os da maior parte dos jovens. Cá entre nós, acho minha vida bem comunzinha”.

Dias de feira é legal por ser comum. Dá impressão de verdade, de quem não quer ser melhor nem pior do que é. No mundo da gastronomia, em que tudo que não é espuma se desmancha no ar, isso é quase um milagre.

Trecho
“Talvez exista quem beba tanto quanto o bucheiro. Mas mais é pouco provável. Tomo como parâmetro o meio onde me meti logo depois, por mais de uma década, o afetadíssimo mundo gastronômico, onde sou conhecido pela forte resistência ao álcool. No mundinho da gastronomia, o que mais há são pessoas que gostam da ideia de gostar de comer e beber, despejando sua enorme carência em uma tacinha de vinho chileno. Prefiro mil vezes a companhia de não bebedores à do canalha que só toma uma tacinha ou, pior, que só prova para ‘degustar’. Sempre bebi e comi para elevar meu espírito – uma tacinha não me satisfaz. Pretendo continuar assim até o fim dos meus dias. Mas consideramos que o foodie é babaca no maior grau se o compararmos com o bucheiro, vamos de extremo a extremo. Ou seja, os bucheiros exageram, no capricho.”

DIAS DE FEIRA
. De Julio Bernardo
. Editora Companhia das Letras, 190 páginas, R$ 35

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