sábado, 28 de junho de 2014

Do football ao futebol - Livro de Mario Filho

Livro de Mario Filho, o irmão de Nelson Rodrigues, revela como o esporte mais praticado no Brasil driblou espetacularmente o racismo das elites brancas e se consagrou como arte popular brasileira


Severino Francisco
Estado de Minas: 28/06/2014



O elegante Didi, um dos maiores craques de todos os tempos, criador da folha seca e defensor do
O elegante Didi, um dos maiores craques de todos os tempos, criador da folha seca e defensor do "jogo bonito"

O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho, merece ser chamado de clássico, com todas as letras, por vários motivos. O livro é um trailer do Brasil, lança luzes esclarecedoras sobre as principais forças de nossa formação de país escravocrata durante mais de três séculos de sua história de 514 anos: o racismo, o espírito de sabotagem e a covardia das elites brancas; a astúcia dos negros e mestiços; a intuição em inventar bolas de meia e em driblar a discriminação. O livro ganhou inesperada atualidade neste momento em que o nazismo jeca volta a se manifestar nos campos de futebol do Brasil e da Europa. É um clássico, ainda, pelo estilo impecável de Mario Filho, que narra essa saga com histórias saborosas, evocadas com a graça e a elegância de uma folha seca do meio-campo Didi.

Recuemos no tempo até o início do século 20, mais precisamente em 1904, quando a capital era o Rio de Janeiro e os engenheiros ingleses trouxeram para o Brasil uma grande novidade: o football. Sim, o primeiro time era o The Bangu Atletic Club. Goleiro era goalkeeper; lateral direito, fullbackrigth; beque central, center-half; centroavante, center-forward. Só podia jogar quem falasse ou gritasse em inglês; para avisar que havia ladrão de bola era preciso berrar: “Man on you!”. Quando precisava chamar os atacantes para voltar e ajudar na marcação, a ordem era: Come back forwards. O campo era chamado pelos cronistas esportivos de fields.

As comemorações também eram em inglês. Avançavam pela noite com muita bebedeira. When more we drink together (Quando nós bebemos muito juntos) virava, na boca dos raros brasileiros, “onde mora o Pinto Guedes”. E For he is a jolly good-felow se transformava em “a baliza é bola de ferro”. Só respeitáveis técnicos ingleses de bigodes imperavam. Os clubes eram fechados para ingleses e filhos de ingleses. “O Paissandu e o Rio Cricket eram pedaços da Inglaterra transplantados para o Brasil”, comenta Mario Filho. “Nos domingos claros de sol, a bandeira inglesa se esticava ao vento, bem no alto dos mastros, um na rua Paissandu, outro em Icaraí.”

Um Fla-Flu só merecia míseras 10 linhas burocráticas de registro nos jornais. Esporte popular era o remo, daí o fato de os clubes se chamarem até hoje Clube de Regatas Flamengo ou Clube de Regatas Vasco da Gama. É claro que, a princípio, os negros e mulatos não podiam praticar esse esporte tão sofisticado, caro e cheio de rituais inacessíveis. A princípio, os brancos reinaram absolutos, pois os estudantes filhos da elite carioca tinham tempo de sobra para treinar. Era um problema de cultivo, cultura, proteínas, treino e disponibilidade de tempo: “O jogador de boa família tinha muito mais tempo para treinar. Era, quase sempre, um estudante. Estudava e jogava futebol. Jogando até mais futebol do que estudando”. Com isso, o jogador branco tinha de ser, durante bastante tempo, superior ao preto, observa Mario Filho. “Quando o preto começou a querer aprender a jogar, o branco já estava formado em futebol. O grande clube sendo uma espécie de universidade. Tudo quanto era professor de futebol ia para lá. Ingleses e brasileiros que tinham estudado na Europa, todos com o seu curso de futebol. Foram eles que trouxeram o futebol para o Brasil, que o passaram adiante, formando clubes. Quem começou antes levando vantagem acentuada. O caso do Fluminense. Quando se fez uma liga, o campeonato foi conquistado pelo Fluminense.”

Improviso A molecada negra e mulata ficava nas imediações dos estádios à espera de que algum beque mais grosso desse um chutão e jogasse a bola fora para roubá-la. Logo a febre do novo esporte se alastrou pelas ruas dos subúrbios, em infinitas peladas com bolas de meia, onde se reinventou a previsibilidade do football inglês, acrescentando-lhe o balanço do samba e a ginga da capoeira; o football virou futebol, expressão cultural brasileira, dança improvisada e imprevisível. Os primeiros negros e mulatos começaram a despontar, timidamente, nos times da elite: “O futebol se vulgarizava, se alastrava como uma praga”, lembra Mario Filho. “No meio das ruas, nos terrenos baldios, onde se atirava lixo, nos capinzais. Bastava arranjar uma bola de meia, de borracha, de couro. E fabricar um gol, com duas maletas de colégio, dois paletós bem dobrados, dois paralelepípedos, dois pedaços de pau. O remo era para os privilegiados, para os seres superiores. Não para qualquer um, como o futebol.”

Os primeiros negros e mulatos começaram a despontar, timidamente, nos times da elite. Havia distinções entre o Bangu, o Botafogo e o Fluminense: “O Bangu, clube de fábrica, botava operários no time em pé de igualdade com os mestres ingleses. O Botafogo e o Fluminense  não, nem brincando, só gente fina. Foi a primeira distinção que se fez entre clube grande e pequeno, um, o clube dos grandes, o outro, o clube dos pequenos.” O futuro da exclusão no futebol não era nada alentador: “Como acabaria aquilo? Bastava olhar para o Bangu. Os ingleses ficando de fora, pouco a pouco. Mais operários no time, menos mestres. Preto barrando branco. Não seria o destino do futebol? O futebol se tornando brasileiro demais”.

Mas não se imagine que a inclusão dos negros e dos mestiços no futebol profissional foi automática. Ela só ocorreu de maneira dramática, com sabotagens, alianças e lances de segregação e humilhação. É significativo o depoimento de um atacante de que “já havia sido negro um dia”. O jogador Carlos Alberto passou pó de arroz no rosto para embranquecer a pele e jogar no aristocrático Fluminense. Tinha de entrar em campo, correr para o lugar mais cheio de moças na arquibancada, parar um instante, levantar o braço e abrir a boca num hip, hip, hurra. “Era o momento que Carlos Alberto mais temia. Preparava-se ele, por isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de pó de arroz, ficando quase cinzento. Não podia enganar ninguém, chamava até mais a atenção. Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de Campos Salles caía em cima de Carlos Alberto: ‘Pó de arroz! Pó de arroz’”.

Em 1923, ninguém prestou atenção no Vasco da Gama, time patrocinado pelos comerciantes portugueses, que, na boa tradição lusitana, misturou negros, mulatos e brancos bons de bola. O Vasco que formasse o time do jeito que lhe desse na veneta. Os brancos continuariam vencendo. Os comerciantes portugueses contrataram um certo Platero, treinador linha- dura, que obrigava os jogadores a trotar do campo da Rua Moraes e Silva até a Praça Sete. Nenhum jogador do América, do Flamengo, do Fluminense ou do Botafogo havia se submetido nunca a esse tipo de treinamento. O Vasco sagrou-se campeão.

Em represália, a liga dos clubes da elite branca carioca baixou portaria exigindo que todos os jogadores escrevessem o nome e tivessem vínculo empregatício. Mas não adiantou: com o profissionalismo, o futebol tornou-se o primeiro espaço realmente democrático da sociedade brasileira, onde não vale o pistolão, o nome de família ou o dinheiro. É preciso impor-se pela competência, a habilidade e o talento. O Vasco mostrou que não se ganhava mais um torneio no Brasil sem jogadores negros e mulatos. Um time de brancos, negros e mulatos era o campeão da cidade. O futebol driblou, espetacularmente, o racismo, mostrando que, como disse Câmara Cascudo, o que o Brasil tem de melhor mesmo é o brasileiro. Ou retificando com mais exatidão crítica: o que o Brasil tem de melhor são alguns brasileiros.


Trecho


“De nada valia, para o Vasco, o campeonato de 23, pelo contrário. A única coisa que o Vasco tinha, além da torcida, a maior torcida que já se vira em campos cariocas, era um time. Os grandes queriam que o Vasco fosse para a Amea com a sua torcida, com o português de escudo da cruz de malta ao peito, toda a colônia, não queriam que o Vasco levasse o seu time. Para isso havia uma comissão de sindicância. Reis Carneiro, do Fluminense, Diocesano Ferreira Gomes, o Dão, do Flamengo, e Armando de Paula Feitas, do América, iriam ver se os jogadores do Vasco, os Nelson Conceição, os Mingote, os Bolão, os Pascola e os Torteroli, trabalhavam ou não trabalhavam. Como viviam, se podiam viver com o que ganhavam.

Se não trabalhassem, seriam cortados. Se trabalhassem e ganhassem pouco, uma quantia que não bastasse para a vida que eles levavam, seriam cortados. E se trabalhassem, e se ganhassem bastante, ainda teriam de passar pela prova terrível do beabá.

Acabara-se o tempo de o jogador só precisar saber assinar o nome na súmula. Se não soubesse escrever e ler corretamnte, e na presença de alguém assim como o presidente da Liga, estava cortado.

Todas as noites, o Custódio Moura, um sócio do Vasco, aparecia em Moraes e Silva para a aula de caligrafia. O mais importante era a caligrafia.

Um pouco antes de começar o jogo, o juiz chamava os jogadores, um por um, o jogador assinava a súmula e pronto. Mas a Liga foi exigindo mais. A papeleta de inscrição tornou-se quase um exame de primeiras letras. Uma porção de perguntas. Nome por extenso, filiação, nacionalidade, naturalidade, dia em que nasceu, onde trabalha, onde estuda, etc., etc.”

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