sábado, 28 de junho de 2014

Notícias do coração da vida [Paulo Mendes Campos]

Diário da Tarde, de Paulo Mendes Campos, sintetiza com leveza o itinerário do poeta e cronista mineiro. Livro reúne 20 edições imaginárias de jornal composto pelo escritor, recheado de lirismo e inteligência



João Paulo
Estado de Minas: 28/06/2014



Paulo Mendes Campos ajudou a consagrar a crônica como gênero literário brasileiro, mas foi poeta em   todos os momentos de sua literatura (Badaró Braga/O Cruzeiro/Arquivo EM - 10/8/60 )
Paulo Mendes Campos ajudou a consagrar a crônica como gênero literário brasileiro, mas foi poeta em todos os momentos de sua literatura

Se você tiver que escolher um livro para levar para todo lugar, em todos os momentos do dia e nas várias fases de sua vida, anote o nome: Diário da Tarde, de Paulo Mendes Campos (1922-1991). O próprio autor definiu, logo na abertura, que se tratava de um livro que “pode ser folheado num lindo dia de chuva, à falta duma boa pilha de revistas antigas”. Todos carregam na memória essa coleção impossível de revistas com as palavras certas para os dias tingidos de cinza. O nome, Diário da Tarde, lembra a função de um jornal que chega ao cair do dia, com o objetivo de consolar o leitor. Os jornais, hoje, já não cumprem essa função, só trazem notícias ruins. Paulo Mendes Campos é poeta, é portador de outras novas. Algumas tristes, mas todas líricas, ainda que melancolicamente líricas.

O livro foi publicado nos anos 1980; depois ganhou edição especial em formato de revista pela Instituto Moreira Salles. Agora, novamente em livro, parece recuperar sua força original: é ao mesmo tempo volume de crônicas, ensaios, poemas e textos sobre futebol. Tudo organizado em forma de periódico, com seções bem definidas. O autor é também editor. Concebe e realiza a tarefa de criar um jornal pessoal, do começo ao fim, apenas com o que acha importante e na forma que julga mais adequada. Tem prosa e poesia. O volume, como destaca Leandro Sarmatz no posfácio, atende ainda a uma das “utopias perduráveis do modernismo”, o jornal de um homem só. Uma corrente inaugurada por Karl Kraus com seu Die Fackel e continuada entre nós por Apparício Torelly, o Barão de Itararé, com seu A Manha (não confundir com A Manhã).

Paulo Mendes Campos entendia do riscado. Escreveu nos principais jornais brasileiros e seus primeiros livros foram coletâneas de textos saídos em periódicos. O jornal era seu ambiente natural e estava acostumado a publicar artigos e entrevistas, além de crônicas. Sabia ainda que o texto literário convive com a notícia mais chã e tirava proveito desse emparelhamento. Como poeta, na linhagem de Walt Whitman e Pablo Neruda, produziu poemas longos, com ideias libertárias. Há uma utopia na poética de Paulo, mas que parece falar menos de nações a serem fundadas e mais de tardes de domingo, esse outro sonho igualmente impossível e verdadeiro.

O escritor foi também um dos criadores do modelo da crônica literária brasileira. Seu estilo nesses textos carrega as melhores característiscas do gênero: tem a graça coloquial de Fernando Sabino, o senso de observação do detalhe despercebido de Rubem Braga, o jeito filosofante humilde de Drummond ao comentar o dia a dia. E ainda um lirismo meio ébrio de vontade de encontro, certa sede de amar de quem sabe que o amor acaba e que os bares por vezes ficam fechados. Além disso, homem culto, Paulo foi tradutor de poetas antigos e modernos e ensaísta bissexto. Parece que, em certa altura da vida, resolveu juntar tudo no mesmo livro. Nascia Diário da Tarde.

O livro é organizado em 20 “edições”. Cada uma traz oito seções fixas: Artigo indefinido; O gol é necessário; Poeta do dia; Bar do Ponto; Pipiripau; Grafite; Suplemento infantil; e Coriscos. Como o nome indica, abarcam material vário, que dá conta dos interesses do escritor e da dispersão do leitor que procura suas revistas velhas como passatempo metafísico. Ele pode ler em sequência, saltar partes, se prender aos assuntos de seu interesse. O certo é que vai encontrar, ainda que com dicção diferente, o mesmo sentimento do poeta que se veste de editor: trazer a sensibilidade e a inteligência para o leitor eventual. As notícias habituais não interessam no diário de PMC. Além de nome do jornal, o título do livro pode ser lido como um desses cadernos de anotações íntimas, que são tomadas ao cair da noitinha...

Artigo indefinido, a primeira seção, traz pequenos ensaios literários, cheios de erudição, mas escritos com leveza e bom gosto. O autor trata do Cântico dos cânticos; do romance Orlando, de Virginia Woolf; de Fernando Pessoa; das contradições de Mark Twain; de John dos Passos; da novela Coração das trevas, de Joseph Conrad; do amigo Pedro Nava; de seus poetas de eleição: Whitman, Neruda e Lorca. Mescla o tom, por vezes enciclopédico, com o de intérprete capaz de alguns lampejos. Sobre Whitman: “Pela primeira vez, um canto épico dedicado à indústria, coisa sagrada para WW; pela primeira vez, além de capitães e navegadores, engenheiros, arquitetos, construtores e mecânicos (...). Um poema para celebrar o mundo ante e anticonceitual, a mistura do que parecia originalmente dissociado: o jardim adâmico e a máquina”.

Os artigos não tratam apenas de temas literários. Há textos que se compõem quase de colagens de citações e informações, como “Morte contemporânea”, que descreve a forma de morrer como decorrência direta da maneira de viver; e “Uma túnica de várias cores”, sobre o hábito de beber (e, evidentemente, de parar de beber seguidamente).

A seção seguinte, O gol é necessário, é ideal para se ler em tempos de Copa. Paulo Mendes Campos trata da história do futebol desde os ingleses, conta histórias de Garrincha (com quem passou uma tarde comendo angu à baiana e bebendo caipirinhas), fala de exames de dopping (a partir do caso do jogador Campos, do Atlético Mineiro), defende o futebol como brincadeira, recorda das Copas de 1958 e 1974, esquece os jogos e times para falar da bola. E, nostálgico, escreve: “O futebol já me viu. O futebol jogou-me como quis. O que colhi no campo dá perfeitamente para eu viver mais 10 ou 20 anos”.

Coriscos de BH As demais seções de Diário da Tarde são dedicadas à poesia. Em O poeta do dia, PMC traduz poemas de Verlaine, Borges, Dylan Thomas, Paul Éluard, Giovanni Pascoli, Pedro Salinas, Wallace Stevens, Eugenio Montale e Stephen Spender. A série intitulada Coriscos faz um passeio por várias regiões de Belo Horizonte, mesmo que só em tom de brincadeira, já que não se referem em momento algum às localidades. Como o nome indica, são textos curtos, pequenos raios de sentido brincalhões, a apontar o sem-sentido das coisas. Como em Coriscos na Floresta: “Todas a mulheres, fiéis ou não, aguardam, tricotando nervosas alguma coisa, um telefonema de Ulisses”. Ou nos Coriscos do Bairro Funcionários: “Segundo um poeta lúcido e doido, os hotéis são caros, mas os bordéis são baratos”. E, ao definir o próprio ofício, em Coriscos na Serra: “O poeta ganha a poesia de cada dia com o suor de sua alma”.

Nas demais partes de seu jornal, entram em cena os próprios versos do poeta-editor, que variam da forma livre do poema modernista aos aforismos. Em alguns textos, meio prosa meio poesia, Paulo Mendes Campos é capaz da síntese impossível entre a racionalidade das ideias e a emoção da expressão lírica. Uma fórmula que apenas ele parecia possuir.

Como em “Penúltimo”, que faz parte da seção Bar do Ponto, dedicada às observações do dia a dia: “Os últimos drinques que bebi com os meus mortos não me deixam; Graciliano, Eustáquio, Raimundo, Jaime, Emílio, Mário, João, Luís, Arnaldo, Darwin, Haroldo, Lúcio, Luís, Vinicius. Era o último. E eu pensava que fosse o penúltimo. Pelas cloacas da noite procuro o que foi, onde foi, quando foi. E nunca entendi nada”.

Ou ainda, na mesma seção, o texto “Trem de ferro”: “A infância era ferroviária. Meninos do meu tempo iam ser maquinistas. Pé descalço no calor do trilho. Cabeleira de capim esvoaçando. Pontilhões me enternecendo. Os êmbolos poéticos do espaço ferroviário. Minha fantasia não era morada de entes sobrenaturais. Sonhos engrenados pelos homens cabiam em nossa medida. Entro no túnel com o sobressalto musical de quem começa um improviso. A penumbra menos inteligível, mais alusiva que a luz. Divaga nessas entranhas um divertimento perverso de túmulo. Mas a boca de saída berra pelo sol”.

As citações não são casuais. Em sua forma aparentemente objetiva, inspirada na menos pessoal das formas de expressão, o jornalismo (mesmo que reinventado poeticamente), Diário da Tarde é um livro de memórias. Do jeito que os mineiros entendem a memória, como Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e Cyro dos Anjos: um jeito tímido de se desvendar, quase sempre a partir da melancolia, mas sem puxar para si nada além da discrição. Os mineiros não gostam de exibir sofrimentos, mas não se perdoam nem dos pecados que não cometeram.

Para o cronista e editor de Diário da Tarde sobra, no entanto, a tarefa de fazer passar com menos peso os dias de chuva na alma do leitor. O livro é um exercício de cordialidade do poeta, que o leitor precisa fazer por merecer.

DIÁRIO DA TARDE
• De Paulo Mendes Campos
• Editora Companhia das Letras
• 330 páginas, R$ 46

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