sábado, 28 de junho de 2014

ENTREVISTA/ALBERTO MUSSA » "O passado me povoa"‏

Romancista carioca lança terceiro livro de uma série dedicada aos mitos de formação do Rio de Janeiro


Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 28/06/2014



 (Cristina Lacerda/Divulgação)


Alberto Mussa é um carioca típico: boa-praça de ótima conversa, que pode entrar dia adentro. Mas é, principalmente, um excelente escritor. Sua obra está traduzida em diversas línguas e é motivo de estudo em universidades ao redor do planeta. Com o recém-lançado A primeira história do mundo, ele dá sequência ao ambicioso projeto de elaborar um compêndio mítico do Rio de Janeiro por meio de cinco romances policiais, um para cada século da vida da cidade. A primeira história do mundo, no qual ele conta, misturando realidade e fantasia, como foi o primeiro assassinato ocorrido no Rio, em 1567, é o terceiro da série, que se iniciou com O trono da rainha Jinga, cuja ação se passa em 1626, e O senhor do lado esquerdo, no qual fala de um crime ocorrido em 1913. Baseado em documentos, mas sem ter “feito uma pesquisa exaustiva”, neste belo romance, que leva o leitor a querer saber desde o início quem foi o assassino do serralheiro Francisco da Costa, Alberto Mussa mescla erudição com um talento nato para a narrativa. Em entrevista ao Pensar, o romancista fala de sua relação com a cidade e garante: “Não vivo no Brasil. Vivo no Rio de Janeiro”.

A primeira história do mundo é o terceiro livro no qual você reconta a história mítica do Rio. No caso, o primeiro crime de morte ocorrido na cidade. Como surgiu o livro?

Pensei no projeto desse livro porque ele me permitia unir três coisas com que me identifico: história, mitologia e narrativa policial. Escolhi o Rio de Janeiro por motivos um tanto óbvios: é a minha cidade, a cidade que conheço melhor. Posso, inclusive, ir aos lugares que descrevo. Acredito que isso seja uma grande vantagem na hora de escrever. Quando decidi escrever sobre o século 16, comecei a ler livros que tratam dessa época. Então, casualmente, li um chamado Conquistadores e povoadores do Rio de Janeiro, que vem a ser um dicionário biográfico escrito por Elysio Belchior. Nele é que estão referidas algumas circunstâncias desse primeiro homicídio, que acabou sendo o fio condutor do romance.

Alguns episódios do livro foram baseados em fatos reais. Até onde a realidade e a ficção se misturam na história?
Se eu revelar onde fica essa fronteira, vou tirar o prazer da leitura, que se baseia precisamente nessa confusão. Aliás, todo autor de romance policial não fala sobre a própria história. É uma convenção do gênero. Para escrever A primeira história do mundo não fiz uma pesquisa exaustiva, daquelas próprias dos cientistas. Fiz, e faço sempre, uma espécie de imersão na época onde situo a narrativa. Leio livros que lançam luz naquele passado. No caso do romance em questão, li também as cartas dos jesuítas, os relatos de viagens de aventureiros, cronistas e historiadores contemporâneos que tratam daquele século. A partir dessas leituras o passado “entra” na minha cabeça, povoa minha imaginação. Acho que é um processo diferente da pesquisa propriamente dita.

Em um dos seus livros, Meu destino é ser onça, você se volta para as mitologias indígenas, tema que retoma em A primeira leitura do mundo, no qual mostra também ter um bom conhecimento do tupi-guarani. Chegou a estudar essa língua?
Estudei tupi antigo – nome mais apropriado – também de forma autodidata, quando comecei a estudar linguística, durante meu mestrado, que foi feito na área de língua, não de literatura, como seria mais natural. A linguística foi – e ainda é, num certo sentido –, uma das minhas paixões intelectuais. Foi uma grande descoberta. Aprender línguas, particularmente aquelas muito diferentes do nosso idioma materno, abre um espectro de símbolos e conceito impensáveis. Acho que o tupi tinha que ser ensinado nas escolas. Pode não ter utilidade, prática; mas (como ocorre com a matemática) aumenta consideravelmente o poder de abstração dos alunos.

Você também estudou o árabe como autodidata ou aprendeu com seu pai, que era filho de libaneses? Você costumava explorar a biblioteca de seu pai?
Meu pai, David Mussa, que era de Campos de Goytacazes, foi um homem extremamente culto, sabia inúmeras línguas, conhecia todos os clássicos. Embora ele reprovasse minha aproximação com a cultura popular, me incentivou a ler e a não ter medo de ler. Com 15 anos, já tinha lido vários desses clássicos: Cervantes, Machado de Assis, Eça de Queirós, Tolstói, Dostoiévski, Oscar Wilde e especialmente os poetas Camões, Cruz e Souza, Castro Alves, Augusto dos Anjos. Meu pai gostava de poesia, queria imitá-los. Os poetas, mais que os romancistas, foram decisivos na minha adolescência.

E quanto ao estudo do árabe?
Nas famílias árabes de origem cristã, é muito raro a língua árabe sobreviver além da primeira geração. Na minha família, entre os nascidos no Brasil, ninguém falava árabe, nem meu pai nem meus tios. Era uma vergonha, havia um preconceito muito grande contra os “turcos”. Comecei a estudar árabe já com mais de 30 anos, quando meu pai e meus avós libaneses já tinham morrido. Aprendi sozinho, como autodidata. Porque tinha também conhecimentos teóricos de linguística, o que facilita muito. Por isso, por ter estudado sozinho, não sei falar, só ler e escrever. Meu propósito era apenas o de poder traduzir Os poemas suspensos, clássico da literatura árabe pré-islâmica. Foi uma grande aventura, que me tomou 10 anos. Agora, a tendência é ir esquecendo aos poucos.

Embora tenha nascido numa família de classe média abastada, você sempre foi ligado à cultura popular, tendo inclusive sido coautor do ensaio Samba de enredo: história e arte. Como nasceu esse interesse?
Da minha mãe Marlene, que tem origens muito brasileiras, de Minas e de Alagoas, herdei o gosto pela literatura policial e pelo samba. Ela sempre leu Agatha Christie e Conan Doyle e ouvia samba no rádio. Pouco tempo depois descobri que meu tio Didi, irmão dela, era compositor de escola de samba. Foi ele quem me levou numa quadra pela primeira vez, na União da Ilha, quando eu tinha 14 anos. Essa foi outra experiência fundadora. Sou até hoje completamente fascinado pelas escolas de samba.

O fato de sido criado no Grajaú, na Zona Norte do Rio, deve também ter ajudado. O que ficou daqueles tempos da infância?

Tudo. Nós somos do nosso lugar. A verdadeira pátria de um indivíduo é a cidade onde ele nasce e passa a viver. O país é algo muito abstrato. Sou brasileiro, mas não vivo no Brasil. Vivo no Rio de Janeiro. As pessoas são do lugar onde podem vigiar a vida dos outros. Onde compram o jornal. Onde seu sotaque se confunde com o dos outros. O Grajaú e a Zona Norte do Rio estão tão entranhados em mim que, hoje, mesmo morando a duas quadras da praia, não vou ao mar, a não ser no fim do ano, na festa de Iemanjá.

A vida na Zona Norte e o convívio com seu povo também influenciaram o escritor?

Creio que sim. Foi a experiência fundamental da minha vida. Foi o meu rito de passagem. Foi no morro que me tornei homem. Onde se constituiu o meu caráter. Aprendi coisas que os livros não me ensinaram, porque os livros não ensinam tudo. Foi no morro que fiz meus primeiros amigos, foi no morro que amei pela primeira vez. Particularmente no que se refere ao futuro ofício do escritor, creio que meu contato com a cultura popular me fez perceber intuitivamente como opera o pensamento mítico, que depois viria a explorar nos meus textos.

. A primeira história do mundo
• De Alberto Mussa
• Editora Record
• 236 páginas

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