sábado, 7 de junho de 2014

Dentro da vida escura - Alessandro Baricco

Alessandro Baricco, uma das vozes mais interessantes da literatura italiana, volta a encantar e surpreender com o romance Mr. Gwyn



André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 07/06/2014


Alessandro Baricco trata temas profundos com graça e leveza, mas sem %u2018aliviar%u2019 a inteligência do leitor     (Eleonora Marangoni/Divulgação)
Alessandro Baricco trata temas profundos com graça e leveza, mas sem %u2018aliviar%u2019 a inteligência do leitor


Um dos nomes mais interessantes da atual literatura italiana, Alessandro Baricco acaba de lançar Mr. Gwyn. Depois de Sem sangue e Esta história, esse belo escritor mostra mais força e talento ao costurar em sua obra, com delicadeza e humor, uma narrativa que aos poucos ganha contornos de fábula. Jasper Gwyn, escritor de sucesso, decide abandonar a literatura à procura de uma questão essencial que perpassa as histórias e a vida de cada um de nós. Essa trama de sonhos e espinhos que é feita de mistério, num processo de descobertas. Baricco constata que existem muito mais sombras. Nem o próprio personagem sabe ao certo o que procura, mas a necessidade de algo mais profundo o leva ao desconhecido. Importa mais a necessidade, a sede, a fome, do que as certezas.

Aos poucos, deixando-se levar pelos sentimentos e auxiliado por companheiros cativantes, ele mergulha numa busca pelo poder transformador da palavra. Para descobrir que cada pessoa é composta de histórias. De grandes histórias e detalhes, que fazem parte, não parece óbvio, dessa rede ora luminosa, ora sombria. Mr. Gwyn é um livro que nos convida a refletir sobre a criação, o tempo, a amizade, o ver e o deixar-se ver. É também uma jornada ao núcleo fundamental da literatura, e uma amostra de como ela nos transforma.

Jasper Gwyn é um escritor britânico, que, aos 43 anos e com sucessos publicados, muda radicalmente o rumo de sua estrada, muda radicalmente o rumo do seu destino. A literatura é mesmo essencial para um homem? A decisão de ruptura surge em um momento peculiar: ao fazer uma pequena caminhada, Jasper percebe que está insatisfeito com sua vida e sua rotina. “Um dia percebi que nada mais me importava e que tudo me feria mortalmente”.

Desta forma banal surge o conflito que perpassa, muitas vezes, as histórias e a vida de cada um de nós. Colaborador assíduo do jornal The Guardian, Gwyn entrega, após a caminhada, o seu último artigo ao jornal. No texto, o personagem lista 52 itens que, a partir daquele dia, nunca mais faria. E o último deles é: escrever livros, para o desespero de seu amigo e agente literário Tom Bruce Sheeperd.

Nada mais instigante para o enredo de um bom livro. Com o abandono da literatura, Gwyn decide viajar para experimentar as mais inusitadas formas de passar o tempo. Durante a aventura, ele é acompanhado por Tom e sua voluntariosa estagiária Rebecca, além de uma misteriosa e perspicaz senhora que conhece em uma sala de espera.

Existem coisas que não queremos fazer. Existem coisas que não podemos fazer. Às vezes é impossível sermos cordiais. É que às vezes nos damos conta de que existe o inusitado, é que às vezes nos damos conta do quanto tudo é estranho, diferente, inadequado. São momentos de sombra. O personagem Jasper Gwyn passou por este abismo colossal. Às vezes, é nessa hora, quando só existe o rumo do vento, que a gente se dá conta do tamanho do mundo. O nosso lugar no espaço, o nosso lugar no mundo torna-se, com isso, insuficiente.

Turbilhão e palavras
O que temos, o que somos? Como conhecer, como chegar ao outro? O que realmente resplandece no pouco, ou no muito, no nosso dia a dia? Baricco nos faz pensar nestas questão com uma delicadeza de pássaro. A vida quase nunca é nítida e, no breu, alegamos enxergar. Baricco nos faz sentir, nos faz ver que é no escuro que todas as formas sonham. Toda nudez consuma-se ali, naquele lugar de precipícios. Baricco meio que ajusta seu pensamento com perfeição, com precisão, para transformar este turbilhão em palavras.

É bom, é sempre bom, não é perigoso refletir sobre plantios e colheitas. Assombro, só o bobo da corte sabe das minudências, só ele se mostra, sem saber, só ele vê os pormenores minuciosos. A certeza é uma faca muito perigosa, que só serve para cortar possibilidades. Quando aparece, a dúvida surge, nesse instante raro e precioso, um verdadeiro mundo. Sabemos daquela festa, temos em nós aquela famosa banda de um homem só. Toda pessoa carrega um arsenal. Mas é inevitável, toda escolha restringe; mas alguns atos ampliam possibilidades. Jasper Gwyn apenas fez a sua lista de 52 coisas.

Isso tudo, esse silêncio, essa predisposição, é bem propício para trazer as coisas, vindas de distâncias enormes. Como numa espécie de encantamento. “Os filhos para os pais, o sucesso para os artistas, as montanhas altas demais para os alpinistas. Escrever livros, para Jasper Gwyn.” Isso tudo para, finalmente, ficar perdido e indefeso. O escritor pode ter parado de escrever mas, e aí a porca torce o rabo, não parou de ler o mundo, ele não consegue deixar de ler a si mesmo e os outros ao redor de tudo. Até achar um rumo e o caminho de volta pra casa, numa espécie de dissolução, de águas beijando águas.

A vida fala várias línguas. Por isso esse tanto, esse nó, esse embaraço ingovernável. Com maestria, com capítulos curtíssimos, Baricco vai deixando iscas e fisga o leitor com uma história simples, mas extraordinária. Não há nada mais belo do que um rosto que, aos poucos, como se fosse, como se ouvisse música, envelhece. Nada mais belo do que esse rumo de folhas. Todo escritor é um alquimista. A pele das horas, a espessura dos dias. Baricco, de forma sutil, escreve sobre o tempo e suas contingências.

Esse tipo de situação é ótima porque passa para o além do inconclusivo. Baricco deixa brechas, deixa margens para mares. Na vida, quase tudo é bagunçado. O escritor apenas atiça e coloca lenha nessa fogueira de espantos. A pele protege o sumo, que ampara o cerne, que abriga algo que beira e beija o inominável. É o que faz o personagem Jasper Gwyn, quando, ao deixar de escrever, transforma-se num “copista”, alguém que tenta “escrever imagens”, alguém muito especial que tenta, profudamente, “escrever retratos”. Mais não se pode dizer. Só lendo.

Baricco escreve com uma gentileza notável. Suas ideias são pétalas. Esse tipo de literatura sugere calma e movimento, mas movimentos de leveza, para melhor apreendermos o pouco que vemos, nesse muito que estamos. A vida está repleta de paisagens nunca vistas.

Alessandro Baricco nasceu em 1958, em Turim. É autor de livros de ensaios, de peças teatrais e dos romances Mundos de vidro, Oceano mar, City, Seda (adaptado para o cinema em 2007), Sem sangue, Esta história e A paixão de A.

MR. GWYN
. De Alessandro Baricco
. Editora Alfaguara, 224 páginas, R$ 39,90

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