Zero Hora - 03/09/2014
É comum chamar de ignorante aquela pessoa que não sabe ler nem escrever.
 Porém, esses são analfabetos, não ignorantes. A ignorância ultrapassa 
as questões escolares.
Qualquer pessoa que durante sua criação não tenha tido algum acesso à
 arte de boa qualidade, a noções mínimas de filosofia e psicologia, à 
literatura, à informação, à música e, principalmente, à ética e ao 
afeto, arranca em desvantagem. Pode conseguir se formar, virar bacharel,
 doutor, mas permanecerá endurecido por um mundo estreito, terá 
dificuldade de dialogar. Abandonado pela falta de critério, de instrução
 e de conhecimento, viverá bitolado como um selvagem. Não conseguirá 
enxergar o mundo de forma generosa, apenas rosnará para espantar o 
próprio vazio.
Como você deve ter adivinhado, isso nos leva ao menino Bernardo. Não
 preciso descrever o que senti ao ler a transcrição dos diálogos 
gravados dentro daquela casa em Três Passos – você sentiu o mesmo. É 
desolador. Leandro e Graciele, que em tese eram responsáveis pelo 
garoto, são dois débeis sem consciência do que suas atitudes provocavam.
 Mesmo que Bernardo fosse uma peste, era uma criança. Uma criança! A 
covardia psicológica que sofreu é diabólica.
O desfecho do caso foi uma exceção – raros sãos os pais que matam 
filhos ou enteados. Porém, se os assassinos são poucos, os ignorantes 
proliferam em todos os bairros, em todas as classes sociais: inúmeros 
homens e mulheres simplesmente não zelam pela cabeça dos filhos. 
Ensinam a escovar os dentes, a dizer obrigado, matriculam numa 
escola e tarefa cumprida. São tão ignorantes que muitos fazem uma 
brincadeira considerada “didática”: estimulam o filho a se jogar de cima
 de um armário garantindo que o segurarão nos braços. E seguram. Seguram
 na primeira vez, na segunda, na terceira, até que na próxima a criança 
se joga e o pai o deixa se esborrachar no chão, justificando-se com a 
pérola: “É pra você aprender a nunca confiar em ninguém – nem em mim”.
Que cretinice. Crianças precisam aprender a confiar, não a 
desconfiar. Crianças precisam ter seus afetos respeitados, e não ouvir 
que a mãe e o pai que amam são vagabundos – mesmo que sejam. É preciso 
garantir a sanidade mental de uma criaturinha em formação, usar palavras
 amáveis, não destruir seus sonhos, dizer a verdade com jeito, não 
estimular a competição, não fazê-la se sentir desprotegida, não tratá-la
 com grossura, não obrigá-la a se posicionar como um adulto antes da 
hora. Tudo isso também é violência.
Custaremos a ver outro assassinato hediondo como esse, mas crianças 
sofrendo agressões pesadas continuarão a existir. Elas não morrerão, mas
 crescerão com transtornos emocionais e um dia criarão seus próprios 
filhos de que maneira? Com o padrão miserável que vivenciaram.
Para evitar que crianças se esborrachem no chão e na vida, para 
fazê-las confiar em si mesmas e no mundo, só combatendo a ignorância.
Nenhum comentário:
Postar um comentário