sábado, 6 de setembro de 2014

O gentleman de Poços de Caldas‏ - Severino Francisco

Antonio Candido destaca o "impecável sentimento do estilo"do mineiro Jurandir Ferreira no prefácio de Um ladrão de guarda-chuvas, reeditado pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil


Severino Francisco
Estado de Minas: 06/09/2014




Em 1996, o crítico Antonio Candido escreveu uma preciosa apresentação para o romance Os ratos, a pedido de José Salles Neto, para uma edição especial da Confraria dos Bibliófilos do Brasil (CBB), com ilustrações de Ênio Squeff. Candido havia participado do júri do Grande Prêmio de Romance Machado de Assis, instituído pela Companhia Editora Nacional, que concedeu quatro premiações a Música ao longe, de Érico Verissimo; Marafa, de Marques Rebelo; Totonho Pacheco, de João Alphonsus Guimarães; e Os ratos, de Dyonélio Machado.

Recentemente, Salles ligou novamente para Antonio Candido com o objetivo de pedir a ele um texto de apresentação para Um ladrão de guarda-chuvas, do mineiro Jurandir Ferreira, um dos grandes ficcionistas e cronistas modernos, mas de reconhecimento restrito. O livro ganhou reedição da CBB, que funciona em Brasília.

Candido, de 96 anos, declinou do convite de maneira sumária: “Não, meu filho, desta vez não posso, não escrevo mais e, além disso, estou doente”. Salles é um mineiro muito educado, mas tenaz e matreiro: “Mas o senhor me concede ao menos dizer o nome do autor?”. O crítico replicou: “Pode, mas não vai adiantar nada”.

Salles aproveitou a brecha e anunciou: Jurandir Ferreira. Candido vacilou: “Mas agora você me colocou em uma situação difícil. É um autor tão importante e tão esquecido que, se você me der algum tempo, sou obrigado a escrever sobre ele”.

E assim Antonio Candido escreveu “Um escritor notável” para apresentar Um ladrão de guarda-chuvas, de Jurandir Ferreira.

PRÊMIO


Lançado em 1995, depois de dar a Jurandir Ferreira, na época com 89 anos, o Prêmio Guimarães Rosa na categoria romance, Um ladrão... foi escrito na década de 1950. Ele conta a história do relacionamento entre um intelectual e um homem simples do interior.

Não é mera coincidência o “clima provinciano” do livro – Ferreira ganhou a vida como farmacêutico em sua terra, Poços de Caldas, no Sul de Minas. Jovem, ele morou em Porto Alegre e em São Paulo, atuou também como jornalista, contista e cronista. É autor dos romances O céu entre montanhas (1948), Telêmaco (1954) e do livro de poesia Fábulas (1949).

A partir de 1953, Ferreira escreveu sobre literatura no Diário de Poços de Caldas. Em 1958, na cidade sul-mineira, fundou o jornal Fronteira. Na década de 1990, Um ladrão... chamou a atenção do Brasil para a importância de seu autor. Em 1991, ele voltou a surpreender com o volume de crônicas Da quieta substância dos dias (Instituto Moreira Salles).

Admirador de Anatole France, Machado de Assis, Eça de Queirós e Monteiro Lobato, Jurandir Ferreira (1905-1997) revelou a Daniel Piza, em reportagem publicada na Folha de S. Paulo, que devia sua “perícia sintática” não apenas a esses ídolos, mas também a seus professores de português. Um deles era Eugênio Rubião, pai do escritor Murilo Rubião, outro mestre das nossas letras.

UM LADRÃO DE GUARDA-CHUVAS


De Jurandir Ferreira
Confraria dos Bibliófilos
Informações: conbiblibr@yahoo.com.br


Um escritor notável

Antonio Candido




Jurandir Ferreira tinha um toque acentuado de rigor no trabalho intelectual e um grande sentimento do outro na vida de relação. Como modo de ser, a discrição e a reserva, que o levaram a não chamar a atenção sobre o que fazia enquanto escritor e enquanto cidadão. E como preocupação constante, no plano da literatura e no plano da vida, a sua cidade de Poços de Caldas. Ela está presente na sua obra narrativa, envolta no “manto diáfano” da efabulação, ou retratada diretamente na sequência das suas crônicas admiráveis, das mais perfeitas da nossa literatura contemporânea.

Nelas é patente o seu profundo sentimento social, que ia desde o protesto contra a barbaridade eventual das intervenções de cunho especulativo que comprometessem o perfil urbano, até a luta eficiente contra a miséria, que ele empreendeu em mais de um rumo, da sugestão fundadora da Gota de Leite à grande obra assistencial que foi o S. O. S., de parceria com a infatigável Elza, sua esposa militante.

Em tudo ressaltava a sua compostura, o impecável sentimento do estilo, tanto no comportamento quanto na escrita. Ao gentleman exemplar nas relações correspondia o autor rigoroso e límpido, que sabia modelar como poucos a nossa língua difícil, imprimindo-lhe inclusive os toques corretivos de ironia, como os que aparecem revestidos de tanta finura neste livro, publicado agora com vestes dignas dele pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil.

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