sábado, 24 de novembro de 2012

A trava dos sentimentos - José Castello


O Globo - 24/11/2012

TALVEZ SE POSSA
PENSAR NA POESIA
COMO UM VÃO.
ALGO QUE SEGURA
OS SENTIMENTOS
FÁCEIS PARA QUE
OUTROS OCUPEM
SEU LUGAR


Não é fácil lidar com sentimentos
sem transformá-los em pesadas
placas de prensa e reduzilos
à máscara lamentável dos
clichês. Sentimentos têm, quase
sempre, uma aparência fácil:
brotam espontaneamente, às golfadas, e escorrem
molhados dos olhos. Difícil é enfrentálos
a seco. Mais difícil ainda, observá-los como
travas que, em vez de expressar, bloqueiam
a experiência.

Tal me parece ser o projeto do poeta Eucanaã
Ferraz em “Sentimental” (Companhia das
Letras). Está em um poema como “Romântica”:
preferimos tomar a vida como um filme.
“Quantos de nós quereriam viver não a vida/
mas o filme, quando a vida não é vida/ e não
se morre na morte...” ele constata. Quantos de
nós preferimos “viver sem viver”: sob as ordens
de um destino previamente escrito
(script), entre bandos “que matam sem matar”,
entre “bravos que no fim se vingam”. Uma vida
sem vida.

Preferimos, sim, os sentimentos fáceis.
Aqueles que em vez de libertar, funcionam como
travas, que seguram o que preferimos não
sentir. Sentimentos prontos: tão mais fáceis.
Em outro poema, “Les romanciers étrangers”,
uma mulher implora por um beijo, mas o homem
o nega. “Firme e frio, disse que não”. Ela
se pergunta: “Mas como ele conseguia/ ser assim,
intransponível?” Aos seus olhos, o homem
é uma pedra. Só no fim, “ela entende/
que tudo foi bem pior:/ porque a pedra não
era ele,/ porque a pedra era ela mesma”. Apesar
das lágrimas, pedra. “Sim, ela era a pedra
dele/ em que ele a transformara”. Sentimentos
nem sempre estão onde julgamos. Uma lágrima
— o poeta sugere — pode ser insensível.
Um “não”, guardar muito mais calor.

Não devemos nos enganar com as impressões
mecânicas. Está no título de outro
poema: “A beleza é uma ferida que nos atinge”.
Nele, uma aranha se desloca de um poema de
Ferreira Gullar para um poema de Alberto
Martins. “Não posso dizer que veio em carne/
e osso, não ouso dizer que veio/ em alma e corpo”.
A beleza pode estar numa aranha que anda,
sem que possamos entender seus motivos.
“Sem que eu, a testemunha,/ saiba, digamos, interpretá-
la”. A aranha (nojenta) expressa a dança
dos sentimentos: eles se movem no escuro,
dão saltos imprevisíveis e escapam a toda compreensão.
A aranha ameaça e fere: ela nos atinge.
Permanecemos em silêncio,
com a beleza de sua dança,
ainda que repulsiva. Vá se entender
o que sentimos.

Eucanaã nos fala da teimosia
como uma estratégia para o
sentir. “Olhos fechados para a
evidência,/ quis entender
aquilo que se recusava/ a seu
alcance”. A sensatez (banal)
sugere que aceitemos os desejos
imediatos e as ilusões automáticas.
A poesia se esquiva
dessas facilidades. “O amigo, em Lisboa, pergunta
o que quero de Lisboa:/ nada, respondo,
não quero senão o que não vem nos postais”. Os
postais enquadram a beleza. O poeta, porém,
pensa em objetos mais densos, mas “como trazê-
los”? Ao amigo (Alberto Martins?) ele, enfim,
responde: “não vale a pena trazer nada, que daí
só trazemos, sem dar conta/ o que nos parte/ o
que nos corta”. Um postal é uma faca, que mata
o que se viveu.

Continuo a avançar através dos versos desafiadores
de Eucanaã. Uma beleza que trepida e
que me empurra para fora de mim. “Vagueio
desacordado de tudo/ e sobretudo em desacordo
comigo”, ele escreve. Na Vista Chinesa, diante
do cenário magnífico, o poeta desconfia outra
vez do que sente. “Achei que/
em meu coração a tristeza era
mesquinha”. Tristeza de amor,
que o cenário (o real) devora,
empurrando para o lugar dolorido
das ilusões. Escreve: “Era
uma tarde chinesa, tarde de
mim sem você,/ quando vi que
nós dois juntos não valíamos”.
Mas não é só poeta que está
em descompasso com o que
sente. Também o leitor — eu,
pelo menos, me sinto assim —
percebe-se alijado do miolo dos poemas, como
alguém que os rondasse, sem penetrá-los. Talvez
essa seja a marca da poesia: a leitura como
ronda. Talvez, a respeito da poesia, eu possa repetir
o que Eucanaã escreve a respeito dos leões:
“amar um leão é não poder amá-lo”. É aceitar
o gozo da distância. Em “El labirinto de la soledad”,
ele fala de Yuri Gagarin que, em 1961, ao
subir pela primeira vez ao espaço, exclamou:
“A Terra é azul”. Descreve um Yuri que, de volta
à Terra, tornou-se um homem sensível, que
“chorava/ nos museus, teatros, diante da televisão”.
Alguns decretaram que ele enlouquecera,
“mas sua mulher assegurava/ que ele apenas
voltara sentimental”. Voltou à Terra não
místico, ou religioso, mas tomado por uma
“ternura devastadora”. Depois de ver a cor verdadeira
da Terra, o que mais poderia sentir?

A viagem através dos sentimentos, porém,
esbarra (termina) em sua própria casca. Como
decifrá-los? Como interpretá-los? Não será o
mais difícil apenas aceitá-los? Depois de declarar
que “a Terra é azul”, Yuri passa a dizer
tautologias como “a leveza é leve”. Só um poeta
(Eucanaã) para encontrar na repetição a brecha
para a beleza. Ele escreve: “Desde o início,/
quiseram caçá-lo; uma pena; Yuri voltou
vivo/ e não nos contou como é a morte”.

Rememora, enfim, seu vínculo amoroso
com a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen,
falecida em 2004, que conheceu através
de outro poeta, Gastão Cruz. Novo deslocamento:
a poesia se transporta para a voz. “A
hora como que se curvava/ quando Sophia falava,
e então/ todas as palavras eram números
mágicos”. No poema seguinte, em que dialoga
com o poeta Antonio Cicero, aponta um paradoxo:
“Repare, Cicero, que os copos se tornam/
mais leves quando cheios de vinho”. O
vinho se apresenta como metáfora para o poema.
Termina: “Repare que o mesmo se dá conosco:
o peso/ faz-se leve em nós se um verso
nos acontece”. Algo nos é arrancado. O poema
não está onde deveria estar e por isso o nome,
“poeta”, parece uma falsificação.

Não, a poesia não se origina dos sentimentos
automáticos. É mais uma lâmina (Cabral) que
os retalha e expõe. O poema arranca algo do
poeta, em vez de lhe dar. Escreve Eucanaã: “é o
que digo;/ se sou, sou-o/ incompletamente”.
Talvez se possa pensar na poesia como um
vão. Uma rachadura. Algo que segura os sentimentos
fáceis para que outros, mais dolorosos
e menos sentimentais, ocupem seu lugar. 

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