sábado, 24 de novembro de 2012

Biografia de Apparício Torelly, o Barão de Itararé - Gustavo Fonseca‏

Doze vezes Barão 

Biografia de Apparício Torelly resgata a trajetória do jornalista e político comunista que enfrentou o conservadorismo e criou um estilo de humor crítico que divertiu e fez pensar, mas não deixou herdeiros 

Gustavo Fonseca
Estado de Minas - 24/11/2012
Certos personagens se tornam tão marcantes que parecem ganhar vida própria e, em casos extremos, acabam por ofuscar seu criador. Na imprensa brasileira do século 20, poucos nomes alcançaram o destaque do mítico Barão de Itararé, persona inventada por Apparício Torelly (1895-1971), cuja memória injustamente se perdeu com o passar dos anos. Num gesto de resgate do jornalista-humorista, Cláudio Figueiredo lança a biografia Entre sem bater: a vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé, com a qual põe novamente em primeiro plano esse gaúcho que defendeu apaixonadamente suas ideias e valores e sabia como ninguém condensá-los em frases geniais, misturando eloquência e bom humor. 


“O senhor, que é doutor em química, vem perguntar justo para mim?”

O jovem Apparício Torelly ficaria envolto em histórias cuja veracidade não se pode comprovar tantas décadas depois, mas muito típicas do humor e da inteligência que o consagrariam mais tarde. No rígido colégio jesuíta de São Leopoldo, por exemplo, o irrequieto menino atormentaria os professores com sua iconoclastia precoce, sempre pronto a questionar e ridicularizar a autoridade. Certa ocasião, não titubearia ao responder ao professor de português Oswaldo Vergara uma frase com verbo no tempo mais que perfeito: “O burro vergara ao peso da carga”. Anos depois, já na faculdade de medicina em Porto Alegre, daria novamente sinais de insubordinação. Entre muitos outros casos, Cláudio Figueiredo narra que, durante um exame, ao notar que Torelly não sabia as respostas, o professor ironicamente pediu ao bedel: “Traga um pouco de alfafa, por favor”. “E para mim um cafezinho”, retrucou o rapaz sem titubear. Mais interessado em boemia do que nos livros, Apporelly (pseudônimo que também adotaria) acabaria por abandonar os estudos e abraçaria de vez o jornalismo, com o qual já acumulava certa experiência, tendo inclusive lançado seu primeiro jornal, o humorístico O Chico, na capital gaúcha em 1918. A repercussão local, no entanto, não seria o bastante para seu talento e a conquista da então capital federal seria o próximo passo.

“Negociata é um excelente negócio para o qual não fomos convidados.”

O jornalismo que Apporelly encontraria em 1925 no Rio de Janeiro seria um misto de formalismo textual com deslavada tendenciosidade, quase sempre comprada a peso de ouro pelas elites políticas e empresariais. Tendo passado pelo Globo, mas sem tempo de se firmar devido à morte de Irineu Marinho, conseguiria espaço no jornal A Manhã, fundado e dirigido por Mário Rodrigues, pai de Nelson Rodrigues. No diário, assinaria a coluna “Amanhã tem mais...”, com seu humor politicamente incorreto e “vítimas” célebres, como Afonso Pena, Procópio Ferreira e Cândido Rondon. O deboche aos famosos e poderosos, contudo, não era uma novidade, e sim a praxe dos jornais daqueles dias, em que ataques pessoais do mais baixo nível eram a regra, não a exceção. Sem destoar das demais publicações, A Manhã chegou a contar com ajuda financeira do então governador de Minas, Mello Vianna, em troca de apoio ao presidente mineiro Artur Bernardes, em contraponto ao oposicionista O Correio da Manhã. A estabilidade financeira do jornal de Mário Rodrigues, porém, não seria o bastante para segurar Apporelly, que se demitiria em poucos meses e já em 1926 lançaria seu lendário A Manha. 

“Sua vida pública é na realidade a continuação da privada.”

Ao parodiar o título do jornal de Mário Rodrigues, Apporelly já dava pistas do que viria a ser sua publicação: um veículo satírico da sociedade carioca, incluindo a própria imprensa. Para personalizar o deboche a seus pares, o humorista criaria a figura do “nosso querido diretor”, que encarnaria toda a pretensão típica da chefia de redação, com seus supostos talentos literários, empresariais, vastos conhecimentos e toda a sofisticação de um grã-fino. Mais tarde, “nosso querido diretor” se transmutaria no eterno Barão de Itararé, uma referência à cidade paulista onde se acreditava haveria o confronto entre as forças pró-Getúlio Vargas, avançando do Sul, e as forças pró-governo, na Revolução de 1930. O embate acabou não acontecendo devido a acordos entre as partes, e Apporelly viu no episódio mais um exemplo de nossa grandiloquência vazia, já que a batalha foi considerada “a mais sangrenta da América do Sul” ainda em seus preparativos. 

“Adeus, pátria e família.”

Nos anos 1930, em meio a radicalismos políticos de esquerda e de direita, Apporelly se mostraria um cético, apesar de nunca ter escondido sua predileção pelo comunismo, inclusive declarando apoio ao regime stalinista na União Soviética. Caricaturista nato, não deixaria passar em branco a teatralidade dos integralistas brasileiros, liderados por Plínio Salgado e francamente inspirados no regime nazista de Hitler. Em A Manha, os autointitulados camisas-verdes seriam sempre chamados de galinhas-verdes e seu lema, “Deus, pátria e família”, mais um motivo de chacota do Barão de Itararé. Suas críticas à Alemanha nazista, porém, deixam entrever um olhar lúcido sobre os perigos que rondavam a Europa em meados dos anos 1930 e que culminariam na Segunda Guerra Mundial. 

“Entre sem bater.”

Em mais um exemplo de suas tendências esquerdistas, Apporelly resolveu recontar em A Manha a famosa Revolta da Chibata, que eclodiu no Rio de Janeiro em 1910 devido aos maus-tratos infligidos a marinheiros. Insatisfeitos com essa iniciativa, oficiais da Marinha sequestraram e espancaram o humorista, inclusive ameaçando-o de morte. Sem perder a oportunidade, Apporelly pregaria na porta de sua sala no jornal o aviso que se tornaria mais um emblema de sua personalidade e, não por acaso, daria título à biografia escrita por Cláudio Figueiredo. 

“Livre pensador, mas não com muita liberdade.”

Marxista assumido e ligado à Aliança Nacional Libertadora (ANL), que em 1935 levaria a cabo a fracassada Intentona Comunista, Apporelly ficaria detido por cerca de um ano durante o regime de Getúlio Vargas, a quem conhecera ainda nos tempos de estudante em Porto Alegre, tendo inclusive sido amigo de Benjamin Vargas, irmão do futuro ditador. Na condição de preso político, conviveria com o escritor Graciliano Ramos, também comunista, e se tornaria personagem do livro Memórias do cárcere. Instigado pelo amigo, planejou naquele período a autobiografia do Barão de Itararé, projeto que infelizmente não levou à frente, deixando espalhados por várias publicações seus escritos, muitos dos quais irremediavelmente perdidos.

Estado Novo, “o estado a que chegamos”.

Com a instauração da ditadura Vargas em 1937, A Manha sairia de circulação naquele mesmo ano, levando o Barão a colaborar no jornal Diário de Notícias por quase seis anos, até a reestreia da publicação satírica em 1945, ano do fim do Estado Novo. Em todo esse período, mesmo livre, Apporelly seria acompanhado de perto pelos homens de Filinto Müller, o temido chefe de polícia de Vargas.

“Pobre quando mete a mão no bolso só tira os cinco dedos.”

Em todos esses anos de sucesso como jornalista, Apporelly chegou a desfrutar de uma vida confortável, apesar de nunca ter se preocupado em acumular dinheiro, o que contrariaria não só seu pensamento marxista, mas também seu espírito desorganizado e boêmio, dado aos jogos e às noitadas. No entanto, sem poder publicar seu jornal e com as consequentes dificuldades financeiras, contaria com o apoio de amigos, entre eles o industrial Guilherme da Silveira, que lhe cederia uma chácara em Bangu, onde moraria por anos. Afinal, “os amigos são para as ocasiões”. 

“De onde menos se espera, daí é que não sai nada.” 

Mesmo tendo abandonado a escola de medicina e abraçado o jornalismo, Apporelly se dedicaria por décadas ao estudo da febre aftosa, em busca de uma vacina contra o mal. Sua obsessão teria começado em 1927 ao ler um anúncio para A Manha sobre um remédio “infalível” que resolveria o problema. Nos meses seguintes, viajaria constantemente para o interior do país para realizar experiências e entender melhor a febre aftosa. Os resultados a que chegou seriam não apenas divulgados no meio científico, sempre cético quanto à seriedade do trabalho do humorista, mas também dariam origem às ampolas de Aphtona, produto destinado a mitigar o tormento dos pecuaristas. O fracasso comercial não desanimaria Apporelly, que nos anos 1940 retomaria sua busca do remédio contra a febre aftosa no laboratório que instalaria na chácara de Bangu. Novamente, porém, sem êxito. 

“Um dia é da caça... os outros da cassação.”

Eleito vereador da Câmara do Distrito Federal em 1947 pelo Partido Comunista do Brasil, apesar de sempre enfatizar não ser um militante, Apporelly seria cassado em pouco tempo, como os demais parlamentares comunistas. Na tribuna, mesmo em sua curta passagem, deixaria a marca de um homem de esquerda, com a defesa de mais igualdade social, e tiradas antológicas, como nos embates em que se envolveu. “O que Vossa Excelência fala entra por um ouvido e sai pelo outro”, disse um opositor. “Impossível, Excelência”, retrucou, “o som não se propaga no vácuo.”

“A mulher deve casar, mas o homem não.”

Apporelly se casou três vezes e teve quatro filhos. Ainda no Rio Grande do Sul, conheceu Alzira Alves, mãe de seus três primeiros filhos. Tendo acusado-a de traição, conseguiu o desquite já no Rio de Janeiro. Porém, antes mesmo da separação, já se envolvera com Z. (cujo nome Cláudio Figueiredo preferiu preservar), madrasta de Alzira. O delicado relacionamento duraria anos, até que Z. romperia com o marido e iria morar no Rio com o humorista. A morte prematura de Z. em 1935, no entanto, interromperia a felicidade de Apporelly, que se casaria poucos anos mais tarde com Juracy, mãe de seu caçula. Mas ela também morreria jovem, em 1939, vítima de leucemia. Duas mortes trágicas que se somariam ao suicídio de sua mãe quando ele ainda era bebê e o falecimento de sua única filha, Ady, pouco depois de Juracy.

“Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato.”

Esquecido do grande público, Apparício Torelly morreu em 1971, aos 76 anos, de arteriosclerose cerebral, seguida de coma diabético, de acordo com o atestado de óbito. Com ele, de certa forma, morreria também o humor politicamente incorreto e, muitas vezes, francamente agressivo, tão típico da imprensa brasileira da primeira metade do século 20 e do qual o Barão de Itararé seria um ícone. A ponto de se confundir com o criador em vida e de ofuscá-lo na posteridade. 


Entre sem bater: a vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé


. De Cláudio Figueiredo
. Editora Casa da Palavra, 480 páginas, R$ 54,90

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