domingo, 18 de novembro de 2012

A voz da canção - Olívia Hime


O Globo  - 18/11/2012

Impossível não pensar ou não tentar penetrar em uma canção: cada modulação, cada desenho melódico. E as palavras!
Magia pura!Como toda criança, desde muito miudinha me interessava em saber o que havia por dentro das coisas. 
Destripei alguns peixes, violei o forro de bonecas, busquei revelações dentro das caixas azul-marinho de Modess de minha mãe, com a sensação constante de que havia algum segredo, uma essência, alguma coisa anterior ao meu olhar e que cabia a mim desvendar.

Veio a adolescência, veio a psicanálise e, finalmente, veio a música - as canções e seus mistérios.

Assim entendo a relação do intérprete com as canções. Não que eu deseje ver as canções violadas, desforradas, destripadas, assim como fiz com o abdômen de meus pobres peixinhos. Muito pelo contrário. Porém, impossível não pensar ou não tentar penetrar em uma canção: cada modulação, cada desenho melódico. E as palavras! Palavras que, a cada vez que você as repete, transformam-se em outras. Magia pura! Toda grande canção, toda poesia é prismática. As leituras são tantas! As possibilidades se revelam quanto mais você as ouve, estuda, repete. Aliás, em francês a palavra "ensaio" é "repetition". É isso: uma canção tem que ser repetida tantas e tantas vezes e um pouco mais. A ponto de se tornar um pouco sua.

Eu diria que existem três tipos de intérpretes: aquele cujo instrumento vocal ou musical e sua técnica bastam para que realize a proeza de trazer a canção a público – o artista virtuoso.
O que "usa" a música: invadindo, interferindo sem, na verdade, ouvi-la. Sem ter a paciência de deixar que ela lhe cochiche algum segredo. Usa e abusa da pobre canção, cometendo floreios, firulas, mudando melodias, repetindo versos aleatoriamente e Deus sabe o que mais. Pior de tudo, vangloria-se da meta alcançada: deformar canções.

Finalmente, existe o intérprete que se torna cúmplice da canção. Que poderá interpretá-la mil vezes seguidas e nunca será igual. Aquele que ama aquela canção com tamanha paixão que, por vezes, seu autor se enciúma. Que se desnuda de tal forma diante daquela melodia, daqueles versos, que jura que seu autor entrou em seus devaneios e psicografou seus sentimentos.

Não só quem interpreta, cantando ou tocando, vai em busca da voz da canção. Também o parceiro de uma música já criada tem a árdua tarefa de tentar decifrar o que se esconde nas dobras daquela canção, já criada. Ao receber uma música para colocar palavras ou vice-versa, se um poema for musicado, cabe a quem chegou depois desvendar a questão que tanto me intrigava na infância: o que já existe dentro das coisas, das pessoas, das canções e como chegar até lá?

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