sábado, 3 de novembro de 2012

Apartheid na tela - Gustavo Fonseca‏

Virando bicho discute o calvário de jovens que desejam ingressar na universidade 

Gustavo Fonseca
ESTADO DE MINAS: 03/11/2012 

Jovens estudantes em cena do documentário dirigido por Silvia Fraiha e Alexandre Carvalho


De acordo com dados do recém-divulgado Censo da Educação Superior 2011, cerca de 7 milhões de pessoas estão matriculadas nas faculdades brasileiras, avanço de 5,6% em relação ao ano anterior. Segundo o mesmo levantamento, o total de negros que frequentavam ou tinham concluído o curso universitário saltou de 4% para 19,8% entre 1997 e 2011. Esses números revelam nítido avanço no sistema educacional brasileiro, que, apesar disso, continua sendo o espelho de uma série de injustiças de nossa sociedade. Mais nítido indicador desse cenário, o vestibular tornou-se um filtro que garante o acesso das elites às melhores escolas de nível superior do país – a maioria delas pública. Na tentativa de mudar esse quadro, o atual governo vem adotando medidas que visam a minimizar esse verdadeiro apartheid educacional, como a recente instituição das cotas raciais e o maior peso dado ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), realizado hoje em todo o país, em detrimento dos tradicionais vestibulares. 

Espécie de síntese desse momento de transição, o documentário Virando bicho, dirigido por Silvia Fraiha e Alexandre Carvalho, acaba por fomentar a discussão sobre o tema ao acompanhar a preparação de seis jovens para o vestibular ao longo de 2010. O filme reúne especialistas e personalidades que de alguma forma se envolveram com esse universo, como o médico Drauzio Varella, professor de cursinho por 20 anos; o jornalista Heródoto Barbeiro, professor de pré-vestibular por 10 anos; o psicanalista especializado em jovens Contardo Calligaris; o coordenador da rede de pré-vestibular Anglo, professor Renan Garcia Miranda; e o coordenador do Educafro, frei David, um dos maiores defensores do sistema de cotas raciais.

O foco são os vestibulandos. A paulistana Carolina Fairbanks, de 19 anos, moradora do nobre Bairro dos Jardins, sempre estudou em escolas particulares, morou na Noruega e tem por objetivo entrar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), como seus pais. Olívia Zanetti, de 18, também egressa de escolas particulares, sonha em cursar medicina em universidade pública. Ana Deise de Souza tem 20 anos, mora no subúrbio de Osasco, na Grande São Paulo, e quer cursar serviço social. Conta com o auxílio do ProUni e prepara-se num cursinho com mensalidade acessível, destinado à população de baixa renda.

Do Rio de Janeiro vem Samara de Oliveira, de 20 anos. Ela saiu de Pedra de Guaratiba, área pobre da Zona Oeste carioca, para morar com uma tia no Catete, a fim de participar do curso comunitário Vetor, com professores voluntários. Seu objetivo é estudar artes visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). De volta a São Paulo, encontramos Erick dos Santos Rocha, monitor do Anglo e natural de Artur Nogueira, interior paulista. Ele sonha estudar direito na USP, dando continuidade à sua formação em escolas públicas. Por fim, Renan Campari, do interior paulista. Malsucedido na carreira de jogador de futebol, ele tinha abandonado os estudos, mas, com o apoio da namorada, quer ser engenheiro civil. Trabalha como vendedor e faz cursinho pré-vestibular.

Índio

O documentário dá espaço à pequena aldeia do povo xokó, em Sergipe. Lá, a Universidade Federal de Alagoas (Ufal) mantém curso pré-vestibular com o intuito de incentivar os alunos locais, inclusive o jovem cacique, a seguir os estudos. Os indígenas relatam a vontade de saber mais e de contribuir para a melhoria das condições de vida de sua comunidade. Uma boa maneira de desmitificar a figura do indígena que só quer viver isolado do resto do mundo, mantendo suas tradições – preconceito que Milena Santos, futura bióloga, faz questão de derrubar.

Sem narrador, Virando bicho dá voz a cada um dos personagens. Costurando o relato dos vestibulandos com a opinião dos especialistas, perpassa as falhas e injustiças do sistema educacional brasileiro. Samara, por exemplo, é incisiva ao condenar o despreparo e pouco comprometimento dos professores que teve no ensino médio, relato similar ao de Renan e de Erick. Há algo ainda mais grave: Ana Deise relata não apenas a má qualidade das escolas que frequentou, mas também o preconceito que sofreu dos colegas, desde pequena, por ser negra. Preconceito que contou com a conivência dos professores, fato que quase a levou a parar de estudar. “As pessoas não acreditam na gente; não acreditam em nosso potencial”, desabafa Ana Deise, que chegou a ser acusada por uma professora de português de ter copiado uma redação, considerada boa demais para ela. 

Raça

As cotas raciais suscitaram posicionamentos fortes. Por um lado veementemente defendidas por frei David e por Heródoto Barbeiro, por outro, elas são vistas como mais um instrumento de injustiça pelos estudantes Renan Campari e Olívia Zanetti e pelo doutor Drauzio. “A cota para a escola pública faz mais sentido”, diz o médico. “Cotas raciais acabam sendo preconceito com o pobre branco”, reforça Renan. Para o índio Heleno Lima, assim como para Ana Deise, as cotas são paliativo.

O filme revela que não há a resposta certa, mas deixa claro que medidas precisam ser tomadas para que a formação educacional dos jovens brasileiros seja melhor e mais democrática, independentemente de sua classe social. No entanto, o documentário também deixa entrever um desafio que surge com a maior presença nas universidades de jovens egressos de escolas públicas: um personagem confessa dificuldades para acompanhar o curso superior devido à preparação inadequada que recebeu nos níveis básicos de ensino, sendo reprovado em disciplinas obrigatórias.
Pelo visto, a inclusão é só um dos desafios. Outros – até maiores – já começam a surgir.


DUAS PERGUNTAS PARA
Silvia Fraiha, cineasta

Ao fim do documentário, um dos egressos de escola pública aprovados no vestibular relata dificuldades no ensino superior devido à base educacional fraca. Trata-se de um caso isolado?

Não é um fato isolado. Isoladas são as poucas escolas públicas com ensino de excelência no Brasil. Isso é bastante chocante quando a gente vê de perto. É como se a gente percebesse que a democracia no Brasil é uma demagogia. Enquanto os jovens cujos pais não têm dinheiro para pagar uma escola particular de qualidade estiverem frequentando escolas com baixo desempenho, enquanto os professores não tiverem salários dignos e boa formação, não dá para acreditar na democracia brasileira. 

Virando bicho foi filmado antes de o Enem ganhar o peso que tem hoje no processo seletivo para o ensino superior. Se tivesse sido rodado em 2012, e não em 2010, haveria alguma mudança significativa no resultado?

Não, porque o Enem é uma espécie de vestibular: prova difícil, extensa, um processo seletivo. É difícil também para os jovens com formação deficiente conseguir ingressar numa faculdade por meio do Enem, mesmo com as cotas. De qualquer forma, a saída é enfrentar o desafio de elevar significativamente os índices de aproveitamento dos alunos no ensino fundamental e no ensino médio.


Vá lá
Mais informações sobre o documentário de Silvia Fraiha e Alexandre Carvalho podem ser obtidas no site www.virandobicho.com.br.

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