sábado, 3 de novembro de 2012

Expansão urbana e preservação - Maria Elisa Costa‏

A apreensão intuitiva e abrangente da realidade é ferramenta indispensável para que o urbanista possa planejar de forma eficaz o futuro das cidades 

Maria Elisa Costa
Estado de Minas: 03/11/2012 




As circunstâncias da vida me levaram a ter um aprendizado informal, para mim precioso, resultante do simples convívio com meu pai, Lucio Costa, e porque tive experiências profissionais muito diversificadas, sempre mais ligadas a problemas objetivos que a especulações teóricas.

Trabalhei na administração pública e para a administração pública; lidei com arquitetura, com projetos urbanos, com legislação de uso do solo, com paisagismo, com comunicação visual e artes gráficas; e houve até uma incursão na cenografia do cinema, que me ensinou a ver as coisas como elas são, independentemente de considerá-las certas ou erradas. Como na cabeça da gente os compartimentos não são estanques, essas várias experiências interagem livremente, sobretudo porque não me “casei” com nenhuma delas.

Assim, os comentários que farei sobre a relação cidade/urbanismo/arquitetura são fruto apenas de observações resultantes da sedimentação dessa mistura. Pude observar que enquanto uma cidade cresce espontaneamente, de acordo com suas necessidades intrínsecas, ou seja, de dentro para fora, existe uma tendência instintiva em direção ao bom senso; as novas ocupações buscam áreas adequadas, respeita-se o chão e o caminho da água – a identidade urbana se confirma. Nessa fase, para ser útil, basta não atrapalhar.

De repente, a administração pública abre uma via desimpedida atravessando áreas até então vazias ou com uso rural – independentemente do mérito da intervenção, é introduzido um fato urbano novo e de origem externa, que perturba a lógica inerente ao desenvolvimento espontâneo. Intervenções desse tipo frequentemente ocorrem – ou ocorreram – antes que a administração se tenha dado conta da utilidade do planejamento urbano.

A partir desse momento, o fluxo natural da expansão é rompido. As novas perspectivas desnorteiam e o bom senso perde o comando da ação; a expansão da cidade, exposta a riscos desconhecidos até então, processa-se aleatoriamente: proprietários rurais vendem suas glebas, para as quais são projetados loteamentos em escritórios distantes, e o resultado são “ilhas” de ocupação sem nenhuma estruturação urbana que as integre, mesmo quando contíguas.

Por outro lado, numa sociedade desigual como a nossa, a população marginalizada passa a ocupar áreas que não corram o perigo de atrair interesses imobiliários – como os morros no Rio de Janeiro, que não permitem acesso viário, ou os alagadiços e beiras de rios em tantos lugares. Essas ocupações implicam sérios problemas de risco para as próprias populações, e, em geral, são conflitantes com a preservação do meio ambiente.

Embora o planejamento urbano seja, cada vez mais, atividade multidisciplinar, o que deve ser prioritariamente cobrado do urbanista é a capacidade do que chamaria de “discernimento preliminar”: a apreensão ao mesmo tempo intuitiva e abrangente da realidade. Ou seja, uma atitude que tenha em vista clareza nos objetivos, que busque sempre saber qual é o norte. Esse discernimento deve atuar em todo o processo e orientar a tecnologia disponível para que a multiplicidade de informações possíveis seja um instrumento produtivo de trabalho e não se transforme num ingrediente para infinitas discussões teóricas.

A partir dessa postura preliminar, fica mais simples perceber quais as pesquisas pertinentes, quais as desnecessárias, pois tantas vezes o problema “está na cara”; avaliar onde, quando e em que medida convém ou é possível intervir; saber onde o freio, onde o acelerador; onde o “não” é indispensável, onde a flexibilidade é possível, onde o excesso de controle atrapalha; onde pequenas intervenções podem gerar resultados significativos; onde cabe cirurgia e onde convém homeopatia – em suma, saber o que fazer.

Sempre é importante que o urbanista não se sinta tolhido em sua liberdade de aventar possibilidades não evidentes ou sugeridas apenas pelas pesquisas.

Arquiteto Com a noção clara de o que fazer, é preciso saber como fazer. É nessa hora que a atividade do urbanista se vincula mais à do arquiteto – muitas intenções corretas em tese se perdem na hora do como fazer, e, às vezes, a ideia de um como fazer pode abrir novas perspectivas no sentido do o que fazer.

Nesse como fazer é indispensável a presença de uma abordagem plástica concomitante com a abordagem prática. Incomoda-me a extrema dificuldade que, hoje, percebo nas pessoas quando se trata de apreciação da qualidade plástica – como se só a técnica fosse objetivamente apreciável. Na música não é assim – ninguém fica constrangido de avaliar qualitativamente música como música, como arte, como algo que vai além, que toca o ser humano em outro plano e lida com emoção e com prazer. Vale lembrar o dito de Lucio Costa: “O que caracteriza a obra de arte é, precisamente, essa eterna presença na coisa daquela carga de amor e de saber que, um dia, a configurou”.

O espaço urbano – que define a escala das cidades – é o envoltório da nossa morada, interagimos com ele contínua e cotidianamente, sua configuração atua sobre cada um de nós. Talvez por isso me dê tanta tristeza quando vejo cidades de porte médio, sem que haja pressão que o justifique, perderem deliberadamente sua identidade urbana, supondo que a construção de prédios avulsos de 15 ou 20 andares seja um passaporte para a tão decantada “modernidade”... 

Nos desafios que o planejamento urbano enfrenta, sujeito a todo tipo de pressões e modismos, a atuação comandada pelo “discernimento preliminar” inteligente – evidentemente, com o indispensável respaldo político – pode contribuir para que se neutralize a ganância imobiliária, administrando bem a “grana que ergue e destrói coisas belas”...

Maria Elisa Costa é arquiteta e coordenadora do acervo da Casa de Lucio Costa, no Rio de Janeiro 



Paisagem construída

‘‘A  construção da paisagem” é o tema do seminário Arf.futuro, fórum de arquitetura que será realizado na Escola Guignard, em BH. O evento discutirá como as cidades de Minas Gerais se preparam para os desafios contemporâneos e de que forma a mineração pode se conciliar com os conceitos de sustentabilidade e preservação ambiental. Terça-feira, haverá palestras dos especialistas Flavio Carsalade (“A relação da mineração e do patrimônio histórico em Minas Gerais”), às 10h; Maria Elisa Costa (15h); Rafael Viñoly (15h30); e debate sobre o tema “Desafios socioeconômicos de áreas mineradas”, às 18h, com Fernando Moreira Salles (CBMM), Franklin Feder (Alcoa), Gustavo Penna, André Corrêa do Lago e Fernando de Mello Franco. uarta-feira, os palestrantes serão Marco Casamonti (10h), Carlos Alberto Maciel (11h), Shohei Shigematsu (15h) e Gustavo Penna (16h). A escola fica na Rua Ascânio Burlamarque, 540, Mangabeiras. O evento é aberto ao público. Informações:www.arqfuturo.com.br.

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