domingo, 23 de dezembro de 2012

Ossadas da ditadura se acumulam sem exames

folha de são paulo

Parentes de desaparecidos políticos aguardam novas identificações
Desde a abertura de valas clandestinas, em 1990, apenas sete restos mortais foram identificados até hoje
PATRÍCIA BRITTODE SÃO PAULOFamiliares de desaparecidos políticos da ditadura militar (1964-1985) esperam há mais de três anos por novos resultados dos trabalhos de busca e identificação dos restos mortais de seus parentes.
A última vez que um desaparecido político foi identificado foi em julho de 2009. Era Bergson Gurjão Farias, que lutou na Guerrilha do Araguaia (1972-1975) e teve o corpo localizado em 1996, no cemitério de Xambioá (TO).
Dos cerca de 400 mortos por agentes do regime, segundo levantamento da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, cerca de 150 foram considerados desaparecidos, pois o corpo nunca foi entregue à família.
Destes, apenas sete foram identificados desde 1990, quando valas clandestinas onde vítimas da ditadura foram enterradas começaram a ser abertas. Antes, outras identificações ocorreram por iniciativa de familiares, mas não há registro de quantas. Segundo ex-militantes, o número não passa de dez.
Dos casos solucionados desde os anos 1990, dois foram encontrados na região do Araguaia e cinco no cemitério Dom Bosco, conhecido como Vala de Perus, em São Paulo.
Hoje 25 ossadas do Araguaia estão em Brasília, à espera de exames por peritos da Polícia Federal para confirmação de identidade. O caso do Araguaia é considerado o mais grave, porque a guerrilha deixou ao menos 62 militantes desaparecidos.
Em São Paulo, também há ossadas aguardando por exames no IML -24 foram exumadas no cemitério de Vila Formosa e seis no cemitério Dom Bosco, em 2010 e 2011.
Além dessas, cerca de mil ossadas extraídas em 1990 da Vala de Perus estão armazenadas no cemitério do Araçá, na região oeste de São Paulo, também à espera de exames.
"É uma tortura permanente", diz Suzana Lisboa, da comissão de familiares. Crimeia Almeida, também familiar, clama para que as Forças Armadas revelem o paradeiro das vítimas. "Se abrissem os arquivos e nos dessem as informações sobre os que foram enterrados nessas valas, os restos mortais poderiam ser entregues à família", diz.
EXPEDIÇÕES
Desde 2010, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria de Direitos Humanos, trabalhou com peritos do Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal, em dezenas de exumações de possíveis desaparecidos políticos.
Até agora, nenhuma resultou em nova identificação. Antes disso, as exumações eram ainda mais esporádicas.
Quando extraídas, as ossadas devem passar por exames antropológicos, que permitem estimar características como idade, estatura e sexo, e de DNA, quando o material genético é comparado com um banco de referência com 185 amostras de familiares.
A comissão especial e o Ministério da Justiça afirmam que a principal dificuldade para identificar as amostras é o estágio avançado de desintegração em que elas são encontradas. As ossadas estariam "porosas, degradadas, extremamente frágeis e, principalmente, com pouca matéria orgânica viável e passível de extração de DNA".
Entretanto, o Ministério da Justiça informou que os peritos forenses da Polícia Federal dispõem de tecnologia avançada e expertise para identificar mesmo as amostras mais degradadas e que os trabalhos não estão parados.
Segundo a pasta, em 2012 foram produzidos seis laudos de DNA e sete laudos antropológicos. Nenhum resultado foi divulgado. "A finalização de um exame por parte da perícia não necessariamente tem como resultado uma identificação", informou o ministério via assessoria.

Papel do SNI traz a data em que colega de Dilma morreu
Guerrilheiro teria sido assassinado no dia 15 de abril, no Rio de Janeiro
Informação consta de documento da agência paulista do SNI que está no Arquivo Nacional e que permanecia inédito
Acervo de Elvio Moreira/Divulgação
O militante Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, amigo de Dilma que dirigia a VAR-Palmares e desapareceu em 1971
O militante Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, amigo de Dilma que dirigia a VAR-Palmares e desapareceu em 1971
JULIANA DAL PIVACOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO
Por mais de dez anos, até a data em que morreram, Jayme e Alice de Freitas nem sequer trocaram a fechadura da porta do apartamento onde viviam, em Belo Horizonte, esperando que um dia o filho caçula entrasse pela porta.
Mas Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, comandante da VAR-Palmares e dirigente na época em que a presidente Dilma Rousseff ali militava, nunca retornou.
Desaparecido desde 15 de fevereiro de 1971 no Rio, até hoje nenhuma instituição militar assumiu a prisão de Beto. A primeira pista oficial sobre ele foi localizada pelaFolha em documento da Agência São Paulo do Serviço Nacional de Informações (ASP/SNI), guardado no Arquivo Nacional e inédito até hoje.
Possivelmente Beto foi executado pela repressão dois meses após a prisão: 15 de abril de 1971, no então Estado da Guanabara.
O documento, intitulado "Informação Nº 4.057", de 11 de setembro de 1975, lista 165 nomes, seguidos por datas e nomes de Estados. Tudo indica que as datas apontam quando o preso morreu.
Em 89 dos 165 nomes as datas e os locais citados são oficialmente reconhecidos como sendo os da morte do militante; 23 deles não constam da lista oficial de mortos e desaparecidos -podem ser codinomes ou nomes frios.
Há 41 pessoas cujas informações sobre a provável data da morte divergem das oficiais; oito não estão associada a uma data, e quatro foram dadas como mortas erroneamente na época em que o documento foi elaborado.
"É uma lista de mortos", disse Suzana Lisbôa, ex-integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e responsável pela maioria dos processos de desaparecidos, ao verificar o documento.
CASA DA MORTE
Além de Beto, são apontadas datas das possíveis mortes de outros 11 guerrilheiros considerados desaparecidos. Entre eles, Aylton Adalberto Mortati, Ísis Dias de Oliveira, Ruy Carlos Vieira Berbert e Stuart Edgard Angel Jones.
Também constam do documento os nomes de Aluísio Palhano, Antônio Joaquim Machado, Celso Gilberto de Oliveira, Heleny Telles Guariba, Mariano Joaquim da Silva, Paulo de Tarso Celestino e Rubens Beyrodt Paiva -o Ministério Público Federal investiga se essas pessoas teriam passado pela Casa da Morte de Petrópolis, centro clandestino de torturas mantido pelo Centro de Informações do Exército (CIE) na região serrana do Rio.
Até agora as poucas informações tanto sobre o destino de Beto quanto dos outros guerrilheiros possivelmente desaparecidos na Casa da Morte vinham do depoimento de Inês Etienne Romeu.
Ela foi a única sobrevivente do centro de torturas. Inês conta que, quando esteve presa no local -durante 96 dias- foi informada por seus torturadores que Beto havia sido executado naquela casa.
A dirigente da VPR também viu e conversou com Mariano Joaquim da Silva, ouviu as torturas a que foram submetidos Aluísio Palhano, Heleny Telles Guariba e Paulo de Tarso Celestino.
Os torturadores disseram a ela que Rubens Paiva também esteve naquele local e que não pretendiam matá-lo, mas que ele não resistira às torturas. O ofício localizado pelaFolha com a provável data da morte de Beto também cita um companheiro de militância preso com ele: Antônio Joaquim Machado.
É a primeira vez que um documento com a possível data da morte de Machado é tornado público: 12 de abril de 1971, três dias antes de Beto

Comissão da Verdade diz que documento é 'importantíssimo'
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO
O coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fontelles, considerou "importantíssimo" o documento localizado pela Folha e afirmou que o ofício pode ajudar tanto na investigação dos casos de desaparecidos quanto na construção do relatório a ser apresentado ao final dos trabalhos da CNV.
"É como se dissesse 'olha essa pessoa, agora tem um documento oficial que diz que a data é esta'. Aqui já tem uma luz bem clara, mas que necessita de confirmação."
Na avaliação de Rosa Cardoso, também membro da CNV, a lista demonstra que havia um trabalho sistemático e organizado dos agentes da repressão a respeito de nomes e datas de morte de militantes contra a ditadura.
"Essa precisão de datas de mortes mostra que eles sabem o que aconteceu e que isso foi divulgado para um certo número de militares que trabalhavam nos organismos de segurança. Eles devem ter esse tipo de registro até hoje em algum lugar", disse.
Primo de Beto, o intérprete Sérgio Ferreira investiga seu desaparecimento desde os anos 1970. De acordo com Ferreira, à época a família foi a Brasília, contratou advogados, buscou por Beto em todas as instituições militares.
Mas nunca foram encontrados documentos oficiais de sua prisão. Para Ferreira, a data apontada no documento localizado pela Folha é coerente com um relatório da Anistia Internacional de 1974, que fazia referência à morte de Beto em abril de 1971.
"Acho muito possível por ser exatamente dois meses depois da prisão. É muito provável que eles o tenham mantido porque Beto teve uma militância longa, conhecia muita gente", disse Ferreira.

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