sábado, 8 de dezembro de 2012

Ousadia concreta (Décio Pignatari) - Carlos Herculano Lopes‏

Com obra que marcou a inteligência brasileira, Décio Pignatari deixa herança na literatura e na teoria da comunicação, com reflexões que avançam além das disciplinas rígidas, com vocação para o novo 

Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 08/12/2012 
A morte do poeta, tradutor e ensaísta Décio Pignatari, aos 85 anos, no domingo passado, é uma perda que ainda vai demorar a sedimentar na cultura brasileira, tantos eram seus interesses e realizações, na criação, na teoria e na capacidade de propor novos olhares sobre a arte e a inteligência. Espírito universal, Décio dialogava com várias tradições e épocas, além de ampliar o espectro da literatura em direção às artes visuais e à teoria da comunicação. 

Paulista de Jundiaí, Pignatari foi ainda criança para Osasco, onde viveu até os 25 anos. Gostava de dizer que a cidade era a sua Dublin e foi lá que iniciou seus estudos “num lindo casarão francês”, onde teria vivido Dimitri Sensaud de Lavaud, um dos pioneiros da aviação no Brasil. Em Osasco, gostava de andar descalço, brincar com os amigos e, ainda adolescente, ajudou a fundar o grupo Juvenil Soma, da Cia. Sorocabana de Material Ferroviário, no qual também atuou. 

Formado em direito pela USP, ocupou lugar de relevância nos últimos 60 anos, sobretudo no universo da poesia concreta, no qual brilhou ao lado dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Com eles ficou conhecido internacionalmente no grupo de poetas do qual participou o mexicano Octávio Paz. Com Augusto e Haroldo esteve presente em vários movimentos culturais dos anos 1950 e se aproximou do tropicalismo, já na década de 1960. Com os irmãos Campos, a seis mãos, publicou Teoria da poesia concreta, em 1965; Mallarmagem, em 1971; e Ezra Pound-poesia, em 1983, entre outros. 

Seu polêmico rompimento com a famosa geração de 1945, que deu muito o que falar, ocorreu em 1951, por ocasião da 1ª Bienal Internacional de São Paulo. Nos anos 1970, já totalmente dedicado à literatura, tornou-se professor de teoria literária no curso de pós-graduação da USP, onde fez doutorado tendo como orientador o professor e crítico literário Antonio Candido. 

Comunicação e semiótica Polêmico e às vezes chamado de rabugento pelos inimigos, escreveu também textos teóricos sobre comunicação, poesia e semiótica. Entre suas obras destacam-se o livro Teoria da poesia concreta, de 1965; o volume de contos O rosto da memória, de 1988; o romance Panteros, de 1992; e a peça Céu de lona, de 2004, na qual tratava das mudanças ocorridas na vida e na obra de Machado de Assis depois do casamento do romancista carioca. 

Como tradutor, foi responsável por versões de clássicos de Dante e Shakespeare e do mais conhecido livro do canadense Marshall McLuhan, Os meios de comunicação como extensões do homem. Um dos seus poemas mais famosos, “Cloaca”, musicado por Gilberto Mendes, com uso das referências concretistas, faz referência à Coca-Cola e ao consumo, com linguagem visual ousada e forte dose de sarcasmo.
Em depoimento dado a Edla van Steen para o livro Viver & escrever, lançado em 1981, Décio contou que suas primeiras influências literárias foram José de Alencar, Castro Alves e o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, cujo livro O amor, as mulheres e a morte, lido aos 13 anos, o deixou muito impressionado. Ainda na entrevista, lembra que a arte concreta fazia parte de um movimento internacional, tendo à frente Max Bill, e cujo líder no Brasil foi Waldemar Cordeiro, de quem fui discípulo e com o qual rompeu em 1960, depois de ter chegado à conclusão de que o stalinismo dele o estava arrastando para a “caretice de um carreirismo individual”. 

Sobre a poesia concreta, pela qual se tornaria conhecido, disse que ela foi o primeiro movimento realmente internacional da poesia brasileira – chegando à Líbia e ao Japão –, e que ela foi o Santos Dumont da cultura brasileira do período. “E como está a poesia concreta atualmente?”, quis saber Edla van Steen. “Quanto mais irreconhecível, melhor”, respondeu Décio Pignatari. Sobre os contemporâneos, confessou que lia pouco e em diagonal: “Dos novos, por inteiro, só o Catatau, de Paulo Leminski”, respondeu.

Em 2009, Décio Pignatari publicou Bili com limão verde na mão, que descrevia como “um livro para todas as idades”. Uma obra que fundia prosa e poesia, ideias e imagens. Maduro, Décio parecia ter descoberto um jeito de ir além das formas, das idades e das classificações. Para quem sempre aspirou à liberdade e ao novo, foi uma espécie de acerto de contas com a arte e com a vida.
Artista e 
pensador


“Para quem, como eu e tantos outros poetas e artistas brasileiros, não se rende à ideia de que já não haveria espaço, hoje, para a radicalidade, a ousadia, o inconformismo e o posicionamento ético perante os modelos impostos pelas grandes corporações midiáticas e, na outra ponta, pelo passadismo que orienta o grosso das pesquisas acadêmicas sobre arte e cultura, a morte de Décio Pignatari representa um golpe duríssimo. Como Affonso Ávila, outro gigante de quem nos despedimos neste cruel 2012, Décio foi um tipo raro de artista pensador, que se empenhava, ao mesmo tempo, em investir contra a mediocridade e em nos oferecer sugestões de caminhos críticos e criativos tão abertos quanto plurais.” 

Ricardo Aleixo, poeta, artista visual e ensaísta

Vanguarda e revolução

“Coincidência: em 1961, Décio tinha 34 anos e fez aquela conferência, Situação atual da poesia brasileira, no célebre congresso organizado por Antonio Candido em Assis, São Paulo. Eu tinha 23 anos, estudante de letras na UFMG, fiz um aparte, que está nos anais. Em 2012, 51 anos depois, há um novo congresso em Assis e chamam-me para abrir o encontro e comentar a tese antiga do Décio e a poesia atual. Muita água rolou debaixo da concretude das pontes. Nossa geração viu duas ilusões se diluírem: a vanguarda e a revolução. O verso não acabou, a visualidade é apenas um dos aspectos da poesia. Mas Décio e os concretistas deram uma chacoalhada na poesia brasileira. Drummond, Bandeira e Cassiano Ricardo – mais velhos – foram influenciados. Os mais novos também. Tenho cartas de Décio. Gostava dele, de seu jeito briguento. É verdade que a vanguarda virou “estilo de época”. Mas acho que certa poesia brasileira, hoje tão próxima do que ele chamava de geleia geral, bem precisa de uma freada de arrumação.”
Affonso Romano de Sant’Anna, poeta

Convergência e transmídia

“A relevância de Décio Pignatari no âmbito dos estudos comunicacionais no Brasil deve-se, principalmente, à natureza de suas contribuições à área. Um dos responsáveis pela introdução da semiótica no país, ele defendeu o experimentalismo de linguagem e a integração dos meios como parâmetro comunicacional. 

Em seu livro Contracomunicação (Editora Perspectiva, 1971), por exemplo, Pignatari postulou dois princípios básicos que deveriam reger a estruturação de uma nova escola de comunicação: a) integração dos meios, códigos e linguagens (“quem compreende apenas um meio torna-se um burocrata servil desse médium”); b) integração entre professores e alunos (“uma classe deve ser uma equipe de trabalho criativo”). Essa proposta comunicacional, radicalmente criativa e intermidiática, antecipa em quase 40 anos a discussão contemporânea sobre convergência e transmídia. 

Ele é responsável ainda pela introdução no Brasil de pensadores relevantes para área de comunicação, como Marshall McLuhan. Pignatari traduziu, em 1964, Os meios de comunicação como extensões do homem, referência obrigatória para conhecer o pensamento de McLuhan. 

Poeta, tradutor e ensaísta, Décio Pignatari soube, como poucos, unir experimentalismo de linguagem e rigor científico. Razão pela qual sua contribuição à área de comunicação, embora circunstancial e de certo modo periférica, é indiscutivelmente relevante.”


Geane Alzamora, professora adjunta do Departamento de Comunicação Social da UFMG

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