sábado, 22 de dezembro de 2012

Paisagem feita de gente e máquinas - Ângela Faria‏

Livro de fotos históricas documenta o processo de modernização da zona portuária do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século 20 

Ângela Faria
Estado de Minas: 22/12/2012 
Quantas cidades cabem numa cidade? A dúvida logo vem à cabeça diante das páginas de Um porto para o Rio (Casa da Palavra), que traz fotografias feitas de 1904 a 1913 durante as obras de modernização da zona portuária carioca. Desde o século 19, vasta iconografia marítima – aquarelas, litografias, óleos, desenhos, croquis, estampas e, por fim, fotografias – registra a Baía de Guanabara como o belo cartão-postal do planeta. Essa paisagem nunca para de mudar: do aprazível porto litorâneo em 1808, quando a corte portuguesa desembarcou no país, à metrópole em obras para a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

A cidade-maravilha-mutante é a verdadeira alma do livro organizado por Maria Inez Turazzi, pesquisadora do Museu Imperial e doutora em arquitetura. O foco está no histórico Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro, pertencente ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj). À primeira vista, traz imagens caras a engenheiros, arquitetos e demais técnicos dedicados ao ofício de construir e planejar. Entretanto, do contraste entre antigos trapiches, docas, cais e armazéns com alicerces, estruturas metálicas e guindastes, surge outra mirada, conduzida por versos de “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa.

Por trás do “excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!”, cantado pelo poeta, está a metamorfose da cidade – e de sua gente. Vêem-se casarios coloniais lá no fundo da fotografia das oficinas do Lloyd e do Dique da Saúde. A moldura urbana à la Ouro Preto enquadra as docas Dom Pedro II. A pilha de pedras das obras portuárias quase chega à altura da torre da igreja do Rio Antigo. No registro do imenso aterro para o cais, a velha cidade erguida pelos portugueses e a skyline do Corcovado quase roubam a cena.

Quando se pensa na degradada zona portuária contemporânea, emoldurada por viadutos e concreto, não é chororô nostálgico lamentar tamanha metamorfose – tradição na terra do “bota-abaixo”. Esse Álbum das obras... surge como uma espécie de prova do crime, exame de corpo de delito da ex-Cidade Maravilhosa.

Agora, o Rio de Janeiro corre contra o tempo. De olho nas Olimpíadas de 2016, quer copiar Barcelona por meio do projeto Porto maravilha. Iniciado há dois anos ao custo de R$ 8 bilhões, o programa promete recuperar 5 milhões de metros quadrados de área urbana no Centro carioca.

“É certo que a contemplação de todas essas imagens, com olhos e ouvidos bem atentos, nos ajudará a refletir sobre as transformações na paisagem do Rio de Janeiro, tão radical há 100 anos como nos dias que correm”, afirma Maria Inez Turazzi – em tom de advertência – ao encerrar o ensaio “Ó máquinas!”.

Memória Guiado por versos de Álvaro de Campos, o leitor toma conhecimento da relação da fotografia com a memória da engenharia e das cidades; da contribuição do fotógrafo Emygdio Ribeiro à iconografia do Rio de Janeiro; e da história da região portuária carioca, pilar da economia fluminense. Antigamente, esses álbuns funcionavam como as nossas propagandas de TV: buscavam dar credibilidade a empreendimentos oficiais e a investimentos privados. Corriam o país, inclusive. Algumas das fotos do porto carioca podem ser encontradas no acervo do Arquivo Público de Minas Gerais.

O homem é o protagonista do conjunto das 100 imagens desse livro, que também traz fotografias de Marc Ferrez, cartões-postais, aquatintas de Jacob Steinmann e telas antigas de Felix Émile Taunay. Naquele canteiro de obras, ressalta Maria Inez, as tecnologias construtivas do século 20 se combinam com pesadas condições de trabalho praticadas desde a Revolução Industrial inglesa: trabalhadores maltrapilhos, vigilância severa e tarefas arriscadas, sem contar a extensa jornada, os baixos salários e a ausência de direitos sociais.

Nessa ode iconográfica ao maquinismo, o trabalhador roubou a cena. Seja ele o escravo que conduz pequenas embarcações ao Paço, na tela de 1830, seja o peão de tamancos e chapéu na mão dentro da imensa ensecadeira, seja o grupo formado por canoeiros, operários e supervisores posando para as lentes no início do século 20. Anônimos, sim. Mas protagonistas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário