domingo, 6 de janeiro de 2013

Na Índia, pôr do sol é toque de recolher das mulheres

FOLHA DE SÃO PAULO

Depoimento
Regras para evitar estupro incluem não usar roupa chamativa e chegar cedo em casa
FLORÊNCIA COSTAESPECIAL PARA A FOLHAO país que deu ao mundo o primeiro manual sexual, o Kamasutra, e que reverencia a energia feminina -a deusa Shakti- vive hoje uma revolução de costumes. Duas Índias -a nova e a antiga- se chocam diariamente.
Nos últimos dias, o mundo tem visto esse embate, com protestos gigantescos após o estupro coletivo dentro de um ônibus e a tortura que resultou na morte de uma jovem de 23 anos em Nova Déli.
A mulher indiana está no olho do furacão dessa disputa em uma das sociedades mais patriarcais do mundo. Há quase meio século, a Índia recebia a sua primeira governante mulher: Indira Gandhi assumiu o cargo de primeira-ministra em 1966. Mas isso não impediu as mulheres de continuarem sendo cerceadas. Até hoje elas lutam para ter o mesmo direito ao espaço público que os homens tem.
Voltar para casa antes do anoitecer é um mantra ouvido por milhões de indianas todos os dias. O pôr do sol é o primeiro aviso desse "toque de recolher". Se a mulher não obedecer e acontecer algo, ela pediu. A culpa é sempre da mulher. Nunca do homem.
As grandes empresas indianas que queiram ter funcionárias mulheres devem abrir os cofres. A lei obriga as empresas a colocar um carro com motorista a disposição das funcionárias após as 22h.
Nos seis anos em que vivi na Índia -de 2006 a 2012-, cansei de ler nos jornais notícias dessas agressões, em geral, estupro em gangue, como chamam os indianos.
Eu mesma, e muitas outras estrangeiras que conheci por lá, tomava cuidados especiais para evitar o assédio: evitava roupas chamativas e não andar de noite sozinha, pelo menos em Déli, onde o problema é mais grave. Na avalanche de comentários sobre o estupro no ônibus, muitos se perguntavam por que ela andava na rua de noite.
Há poucos meses, um político chegou a culpar o macarrão chinês cada vez mais consumido no país por aumentar a libido dos indianos.
O irônico é que mesmo na Índia moderna todos os tipos de violência contra a mulher permanecem latentes. Segundo o Departamento Nacional de Crimes, ligado ao governo, houve um aumento de 7% em crimes contra a mulher entre 2010 e 2011. Alguns casos mobilizaram a opinião pública. Em 2008, jornais e televisões estampavam que em Mumbai duas garotas foram atacadas e assediadas sexualmente por uma multidão em numa festa de Réveillon na rua.
Há alguns meses, a maior democracia do mundo parou para debater o caso de humilhação pública de uma moça que cometeu o erro de curtir uma noite em um bar.
Ela foi arrastada pelos cabelos e humilhada por 18 homens durante 45 minutos na frente de uma câmera de televisão em uma cidade no nordeste da Índia.
Enquanto rasgava a sua roupa, a gangue masculina sorria para a lente do cinegrafista com orgulho.
O grande nó da questão é a apatia da Justiça e do governo nos casos de violência contra a mulher. Os homens não temem a polícia -que costumam acusar as mulheres sempre que acontece algo. Em uma sociedade patriarcal, meninos valem mais do que meninas. Mães se legitimam dentro de suas famílias ao darem à luz um menino e caem em desgraça quando nasce uma menina.
Que bom que dessa vez os indianos -muitos homens entre eles- foram às ruas protestar. Não foi um protesto só contra o estupro, mas contra a aceitação sutil da punição a mulheres que "ousam" ignorar "o toque de recolher" não oficial. Enquanto os conservadores culpam a influência ocidental por tudo de ruim que acontece com as mulheres, a nova Índia grita cada vez mais alto.

    Ninguém parou para ajudar, diz amigo de vítima
    DAS AGÊNCIAS DE NOTÍCIASPessoas que passavam pelo local se recusaram a ajudar a vítima de estupro nua, sangrando, em uma rua de Déli, na Índia, e a polícia demorou 30 minutos para levá-la ao hospital.
    Esses são alguns detalhes da primeira entrevista do amigo da estudante indiana estuprada em 16 de dezembro e que morreu oito dias depois. O caso gerou violentos protestos e deu início a uma discussão nacional sobre violência contra mulheres.
    A estudante de fisioterapia de 23 anos foi estuprada por seis homens dentro de um ônibus e espancada com barras de ferro, junto com seu amigo. Os dois foram jogados para fora do ônibus em movimento, nus. Ela morreu em um hospital em Cingapura, por causa de ferimentos graves no intestino.
    "Não consigo descrever, o ataque foi brutal...nem animais se comportam daquele jeito", descreveu o amigo.
    A entrevista veiculada por uma TV indiana deve acirrar os ânimos em um país onde acontece um estupro a cada 20 minutos e o assédio sexual de mulheres é sistemático.
    Os dois ficaram deitados na calçada, sangrando e nus, por quase uma hora antes que carros da polícia chegassem. "Algumas pessoas se aproximaram e ficaram olhando, mas ninguém ajudou. Minha amiga estava muito ferida e sangrava muito. Nós estávamos nus. Tentamos parar os transeuntes. Durante uns 25 minutos, riquixás, carros e bicicletas desaceleraram para olhar, mas ninguém parou. Aí, alguém parou e chamou a polícia."
    Quando os policiais chegaram, ficaram meia hora discutindo onde deveria ser registrada a ocorrência antes de levar a vítima ao hospital.
    Cinco indiciados pelo crime vão se apresentar ao tribunal amanhã. Um promotor disse à juíza do caso que exames de DNA mostraram que as manchas de sangue na roupa dos acusados correspondem ao sangue da vítima.

      Nenhum comentário:

      Postar um comentário