domingo, 6 de janeiro de 2013

O último rango - Memórias que viram histórias

FOLHA DE SÃO PAULO

ARQUIVO ABERTO
Memórias que viram histórias
O último rango
Brasília, 1982
HELOISA JAHNNuma noite de 1982, em Brasília, seria a estreia da peça de Pingo, "O Último Rango". Fazia um bom tempo que o amigo ator e criador de dramaturgias estava fora dos palcos e a expectativa era grande.
Anos antes, Jota Pingo (1946-2012)-nascido Carlos Augusto de Campos Velho, gaúcho, irmão mais moço do ator Paulo César Pereio- atuara no "Hair", uma espécie de clichê que o acompanhava sempre que se queria dar a ficha do grandão de olhos luminosos que em qualquer situação surpreendia.
Começo de noite. O local era um teatro, uma espécie de barracão na W2, em Brasília. Poucos carros passavam. Uma fila se formou, à espera da abertura da bilheteria. Apareceram os membros da trupe com canequinhas de alumínio, que foram distribuindo pela fila. A canequinha vinha cheia de cachaça.
Ao entrar, demos com um recinto inesperado: o público se acomodaria em mesas, como numa tasca rústica. Desde a fila, a bebida criara entre os que chegavam um sentimento eufórico de confraternização e curiosidade: de adesão ao que viria, fosse o que fosse. Haveria mesmo uma peça? Ao fundo, num ponto central, numa boca de gás, havia um panelão fechado. À esquerda, no alto, via-se um balcão onde uma banda tocava um rock descabelado em alto volume. Alguém acendeu o fogo sob o panelão.
Sentados às mesas, caneca na mão, servidos constantemente pelos garçons-atores, nós, o público, conversávamos, ríamos, já esquecidos de que viéramos assistir a um espetáculo: a sucessão tradicional de fatos -comprar ingresso, entrar, instalar-se, silenciar- estava mais que subvertida: deixara de existir.
Por isso, quando a música parou e os atores começaram a andar por cima das mesas falando textos, assumindo papéis dramáticos, o público já estava longe e sentiu-se atrapalhado em sua própria atuação. Os pés que passavam à nossa frente enquanto conversávamos com o novíssimo amigo do outro lado da mesa pareciam um tanto acintosos: a partir de certo momento fomos convidados a dançar ao som daquele rock doido, numa clareira entre as mesas. Isso sim, queríamos fazer: dançar, erguer os braços, cantar aos berros. O chato era que os atores não nos largavam: no meio da dança, apareciam e nos instruíam a voltar para as mesas para que a encenação prosseguisse. A banda se calava, o público se sentava, os atores subiam nas mesas e diziam seus textos. A panela havia começado a fumegar.
Os ciclos mesa-atuação-rock-dança foram se sucedendo. Num dos momentos dança, vi uma nuvem branca avançar sobre nós, vinda da esquerda. Encantou-me o fato de que além de todos os elementos literalmente sensacionais da situação, o grupo tivesse produzido uma névoa de gelo seco. Quando a nuvem chegou aonde estávamos, senti dificuldade para respirar e corri para a mesa, com o resto do público. Apareceram bombeiros aos gritos, instruindo todos a abandonar o local. Ainda ouvi uma mulher dizer preocupada ao acompanhante: "Isto aqui vai acabar em suruba".
Na calçada, parte de nós ficou à espera dos acontecimentos, mas a maioria foi embora. Dali a 15 minutos apareceram de novo os atores, convidando-nos a voltar.
Tudo estava coberto por uma camada fina de pó branco, resultado, como logo ficamos sabendo, da aspersão do conteúdo de um extintor de incêndio por um dos membros da banda (em tempo: a banda era Aborto Elétrico, e seu líder, Renato Russo). No ar, um ótimo cheiro de sopa. Nós, o público, éramos, agora, umas 20 pessoas. Não havia como retomar a encenação; vi o Pingo numa mesa ao fundo, sem camisa, de cabeça deitada sobre os braços, imagem da derrota.
A tampa da panela, coberta de pó branco, trepidava com o vapor que saía. Distribuíram pratos de alumínio e colheres; formou-se uma fila quase burocrática e o último rango foi servido com certa solenidade.

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