sábado, 2 de fevereiro de 2013

Álvaro Pereira Júnior

folha de são paulo

Em frente à Kiss


Da ampla avenida Rio Branco, que tem canteiro central arborizado com muitos bancos de concreto, sai, em declive, apontando para o leste, a rua dos Andradas. A calçada do lado direito de quem desce tem uma agência bancária na esquina, depois o consultório de uma vidente, logo ao lado uma academia de ginástica, em seguida uma empresa grande de fotos para formaturas.
Mais abaixo da loja de fotografias, aqui no centro de Santa Maria, a caminhada se interrompe: há um cordão de isolamento. Entre o cordão e a calçada, vasos e vasos de flores, cartolinas com mensagens de protesto ou saudade, fotos de gente muito jovem, e até um atestado de óbito colado na parede.
É uma espécie de memorial, à moda dos que se veem na porta de escolas americanas depois dessas matanças cada dia mais comuns.
O ponto das homenagens é o número 1.925 da rua dos Andradas. Ali, fica, ou ficava, a boate Kiss, onde, domingo passado, mais de 230 jovens morreram em um incêndio.
Passa um pouco da meia-noite de quinta-feira. Volto para o hotel depois de um dia longo de trabalho, preparando uma reportagem para o "Fantástico". É a primeira vez que visito o que restou da Kiss.
O choque inicial é também definitivo: o choque da trivialidade. Não se vê uma praça de guerra, tanques, não há sobrevoo de helicópteros, não se enxergam ruínas, vestígios de deslizamentos de terra, escombros ou o esqueleto de um prédio consumido pelo fogo. Nada do que se imagina existir em um lugar que, apenas quatro dias antes, foi cenário de uma carnificina.
A fachada da Kiss mal tem resquícios do incêndio. Só mesmo os buracos feitos de improviso nas paredes, na tentativa de abrir novas saídas. Poderia ser uma obra qualquer.
Se existe alguma semelhança entre a rua da boate e uma zona conflagrada, é com o que mostra o filme "Guerra ao Terror", de Kathryn Bigelow: ciladas urbanas.
A geringonça jogada na rua pode ser uma bomba improvisada. O congestionamento repentino pode ser a deixa para franco-atiradores entrarem em ação.
Disparados os tiros, cometido o atentado, tudo volta ao que era. Famílias fazem compras no verdureiro, crianças jogam bola na rua.
É a mesma sensação neste início de madrugada em Santa Maria. Havia uma boate, a boate era uma armadilha, pegou fogo, matou muita gente, fim. A dor indizível está em cada casa -ou melhor, em todas as casas. A tragédia vai marcar a cidade para sempre. Mas não de uma forma física, exceto por uns poucos metros no entorno imediato da Kiss.
A vida segue, Santa Maria está acordada. O Grêmio disputa a decisão da pré-Libertadores contra a LDU do Equador.
Um motoboy aparece para dar uma olhada no que restou. Chegando bem perto, em um dos extremos do cordão de isolamento, ainda dá para sentir o cheiro de queimado.
Um casal deixa a moto na av. Rio Branco e desce a pé até a frente da boate. A mocinha de capacete cor-de-rosa examina o cenário sem demonstrar emoção. Dois gordinhos de bermudas falam baixo.
"Mas cadê o queimado, cadê o queimado?", pergunta, em tom de desconfiança, como se duvidasse de que morreram mesmo tantos jovens, uma senhora de cabelos negros até a cintura e saia comprida, acompanhada de outras mulheres de cabelos negros até a cintura e saias compridas.
De repente, gritos em um bar próximo. São de alegria. Marcelo Grohe, goleiro gremista, pegou um pênalti. Vitória gaúcha. Rojões, mais gritos. É festa. Talvez mais discreta do que se tudo estivesse normal na cidade. Mas uma festa mesmo assim.
Encerro a visita. Nas cinco ou seis quadras que separam a Kiss do hotel, pessoas felizes bebem na rua, muitas com a camisa do time vencedor. Uma portinha iluminada de vermelho indica, quem sabe, um bordel em plena operação.
Já é quase uma da manhã, um gremista ainda passa buzinando. Da janela do quarto, vejo o canteiro central da avenida Rio Branco. Um casal de meia-idade se beija, sentado em um dos tantos bancos de concreto.
Álvaro Pereira Júnior
Álvaro Pereira Júnior é graduado em química e jornalismo pela USP, com especialização em jornalismo científico pelo MIT. Trabalha no programa "Fantástico", na TV Globo. Escreve aos sábados, a cada duas semanas, na versão impressa de "Ilustrada".

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