sábado, 2 de fevereiro de 2013

Torniquete e ferroadas (História da caricatura brasileira) - Ângela Faria‏

Primeiro dos sete volumes da monumental História da caricatura brasileira, de Luciano Magno, recupera os pioneiros do humor nacional e revela a obra de mais de 300 chargistas e desenhistas 


Ângela Faria
Estado de Minas: 02/02/2013 


Manoel de Araújo Porto-Alegre se autodesenhou, de chapéu de penas, ao lado de dois amigos: Carlos Miguel Lima e Silva, irmão do duque de Caxias, e o poeta Gonçalves de Magalhães


História da caricatura brasileira (Gala Edições de Arte), obra de Luciano Magno – pseudônimo do pesquisador carioca Lúcio Muruci –, funciona como um guia pelo proverbial bom humor nacional. O volume de estreia da coleção vale quanto pesa: seus 3,5kg carregam 528 páginas e 700 imagens de trabalhos dos pioneiros do ofício que fez a fama de Henfil, Millôr Fernandes, Lan, Ziraldo e Angeli, entre outros mestres do traço.

“Nosso projeto procura resgatar e revisar a história da caricatura brasileira, mapeando essa produção gráfica. Vamos enfatizar a expressiva criação gerada fora do eixo Rio-São Paulo, vinda de estados como Bahia, Rio Grande do Sul, Ceará, Pernambuco, Minas e Paraná, entre outros”, explica Luciano Magno. 

O autor aposta em um novo marco fundador da caricatura verde-amarela. Até o primeiro volume de sua série ser publicado, o gaúcho Manoel de Araújo Porto-Alegre era considerado o pioneiro, autor da charge A campainha e o cujo, de 1837. Magno garante: o marco, na verdade, é o desenho estampado em 1822 pela gazeta pernambucana O Maribondo. A caricatura traz um corcunda (representando os portugueses) aos pulos, acossado pelo enxame de marimbondos (os brasileiros).

Entretanto, o pesquisador enfatiza: se a publicação pernambucana ostenta o “marco inaugural”, de autoria de um desenhista anônimo, coube ao gaúcho o “marco oficial”, 15 anos depois. “Porto-Alegre tinha a noção clara de seu papel e de seu pioneirismo. Seu trabalho vinha acompanhado de um texto que dizia: ‘Saiu à luz o primeiro número de uma nova invenção artística’. Ele foi o patrono, o primeiro profissional dessa arte no Brasil. Os anteriores a ele eram anônimos, além de não se colocarem propriamente como caricaturistas”, explica Luciano Magno. Artista completo, o gaúcho criava tanto charges – ou seja, caricaturas políticas – quanto caricaturas pessoais, o retrato fisionômico. Também lançou a primeira revista especializada do país: A Lanterna Mágica.

O projeto de Luciano Magno é ousado: além de propor novos marcos históricos, promete trazer à luz talentos até agora ignorados – inclusive por clássicos como História da caricatura no Brasil, publicada em 1963 pelo cearense Herman Lima. Sociólogo, Magno iniciou suas pequisas aos 15 anos. Há duas décadas e meia fuça antigas publicações na Biblioteca Nacional e no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, além de vasculhar acervos do Arquivo Público do Estado de São Paulo, do Arquivo Público Jordão Emerenciano, no Recife, e da Fundação Cultural de Curitiba.

Os sete volumes focalizarão vida e obra de cerca de 300 desenhistas. Com o tempo, muito se perdeu – inclusive imagens anteriores àquela publicada em O Maribondo. “Caricaturas feitas na Revolução Pernambucana de 1817, por exemplo, não sobreviveram”, lamenta o pesquisador. No início da década de 1820, explica Magno, aflorou o sentimento nativista na imprensa brasileira. A autonomia de opinião passou a marcar publicações cariocas, pernambucanas, baianas e maranhenses.

Política e caricatura, aliás, são irmãs gêmeas – para não dizer xifópagas. Imagem tem poder. Que o diga o jornalista ítalo-brasileiro Angelo Agostini, nome emblemático de nossa imprensa no século 19. Em 1876, ele fundou a Revista Ilustrada – semanário republicano e abolicionista que circulou no Rio de Janeiro até 1898. “Trata-se da figura mais emblemática de nossa caricatura oitocentista.”

“Agostini teve papel fundamental nas grandes campanhas políticas da época: a abolicionista, a republicana e a da questão religiosa”, relembra Luciano. Esse italiano naturalizado carioca revolucionou a caricatura brasileira. “Um de nossos maiores abolicionistas, Agostini mereceu de Joaquim Nabuco esta lapidar definição: ‘A Revista Ilustrada é a bíblia da abolição do povo que não sabe ler’.” 

Agostini, Porto-Alegre e outro craque, o português Bordalo Pinheiro, ficaram para a história. O mesmo não se pode dizer de nomes não menos importantes. “Meu livro resgata artistas não contemplados ou mencionados em estudos anteriores. É o caso de Leopoldo Heck, Carneiro Vilella, Luiz Távora e Maurício Jobim”, conta Luciano. Ele buscou também resgatar as primeiras aparições do desenho de humor no Brasil, por meio da obra do curitibano João Pedro, O Mulato (que não chegou a ser publicada), além de analisar a produção pioneira pernambucana.

“Chamou-me a atenção A. P. Caldas, editor e autor de caricaturas para o jornal O Torniquete, que teve tiragem de nove números, em 1878. Essa obra autoral inclui composições bizarras geniais, como a surreal “Página enigmática”, com originalíssima mistura de natureza e retrato. Caldas revelava traço de tendência cartunística ou caricatural avançado para uma época em que os cânones impunham regras e qualidades estéticas bem definidas”, destaca. Os caricaturados por Caldas se metamorfoseavam entre plantas e arbustos, “num grau de delírio criativo que lembra os surrealistas”, encanta-se Magno.

Depois do livro dedicado aos precursores, Luciano Magno – cuja coleção foi viabilizada pelo Programa Petrobras Cultural – vai lançar volumes dedicados a caricaturistas em meio às guerras, à diplomacia e às questões nacionais do século 19; à geração do alvorecer do século 20 (com nomes emblemáticos da belle époque brasileira); ao período entre a Primeira República e a Revolução de 1930; ao humor gráfico de 1925 a 1960; e ao humor gráfico contemporâneo. O sétimo volume abordará fatos e personalidades da cultura brasileira.

HISTÓRIA DA CARICATURA BRASILEIRA

Os precursores e a consolidação da caricatura no Brasil. 1º volume
De Luciano Magno
Gala Edições de Arte, 528 páginas
O livro é vendido pelo preço promocional de R$ 89 no sitewww.historiadacaricatura.com.br ou pelo e-maillucio.muruci@ig.com.br
Preço médio nas livrarias: R$ 130

Três perguntas para...

Luciano Magno
pesquisador

Vários autores abordados no livro vieram da Europa. Fizeram daqui uma espécie de “sucursal” da produção europeia ou já apresentam características brasileiras?

De fato, nos séculos 19 e 20 a caricatura brasileira tem muita influência europeia, sobretudo francesa. Mas há de se destacar o nativismo latente na obra de artistas como o catarinense Rafael Mendes de Carvalho, assim como na produção de jornais pernambucanos na década de 1840, como Arara, O João Pobre e A Grande Tempestade. Produções xilográficas de origem nordestina, com brasilidade latente, mesclaram-se à tradição da caricatura brasileira. De forma geral, conteúdo e enredos das charges e caricaturas, desde o século 19, sempre foram nacionais.

Como se dá essa brasilidade?

O próprio patrono da caricatura brasileira, Manoel de Araújo Porto-Alegre, que recebeu influência europeia, tinha estilo com bastante originalidade. Apresentava sentimento autônomo e referências nacionais, se comparado a seus confrades europeus. No século 19, Angelo Agostini já demonstrava ser um autor muito brasileiro. Fez As aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma viagem à corte, série mundialmente pioneira em histórias em quadrinhos, publicada em capítulos a partir de 1869. Foi a primeira novela gráfica brasileira. As aventuras de Zé Caipora dá prosseguimento a esse projeto e mostra notoriamente a brasilidade do autor. Índios e a natureza brasileira, com seus bichos, marcam essas séries.

A caricatura perdeu seu espaço, outrora nobre, nos jornais. Como elas enfrentam a crise da imprensa escrita em meio ao avanço da internet?

Mudanças sempre ocorrem. Desde o advento do rádio, da televisão e agora da internet, afetando o jornalismo gráfico e fazendo artistas migrarem do cartunismo jornalístico impresso para outros veículos. É natural que caricatura e cartum ocupem esses novos veículos. Acho que a caricatura se reinventou. Continua recorrente o nível de excelência de nossos artistas, a capacidade de retratar o país e sua inserção em termos políticos e culturais, exercendo função crítica. A tradição do humor é muito forte no brasileiro. Podemos contar a história de nosso país por meio da caricatura.

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