sábado, 16 de fevereiro de 2013

Missão (quase) impossível-Gustavo Fonseca‏

O ofício de traduzir, associado ao luto e ao fracasso pelo filósofo francês Paul Ricœur, alimenta-se da falha para disseminar a hospitalidade linguística na babel contemporânea 

Gustavo Fonseca
Estado de Minas: 16/02/2013 
Cena de Romeu e Julieta em montagem do grupo Galpão: texto sobre amor e paixão desafia tradutores há séculos (Gustavo Campos/Divulgação - 4/12/99)
Cena de Romeu e Julieta em montagem do grupo Galpão: texto sobre amor e paixão desafia tradutores há séculos


Dada a relevância da tradução para a circulação de ideias e as dificuldades linguístico-culturais inerentes à atividade, não é de surpreender que tantos pensadores ilustres ao longo da história tenham refletido sobre o processo de verter um texto numa língua estrangeira. Na França do século 20, por exemplo, seguindo uma tradição nacional secular e na esteira de grandes autores que refletiram sobre a linguagem, como Michel Foucault, Jacques Derrida e Antoine Berman, o filósofo e doutor em letras Paul Ricœur, que se destacou por seu trabalho sobre hermenêutica, fenomenologia e teologia cristã, produziu expressiva obra sobre o ato de traduzir. Na pequena coletânea Sobre a tradução, a Editora UFMG disponibiliza ao leitor brasileiro três de seus principais ensaios dedicados ao tema: “Desafio e felicidade da tradução”, “O paradigma da tradução” e “Uma ‘passagem’: traduzir o intraduzível”.

No primeiro texto, na verdade um discurso pronunciado no Instituto Histórico Alemão em 1997, Ricœur comenta a angústia do tradutor diante do impedimento de realizar a contento seu trabalho, qual seja, manter intacto o sentido original pretendido pelo autor, o assombro do “fantasma da tradução perfeita”. Para superar essa barreira, Ricœur recorre à psicanálise freudiana e sugere um trabalho de luto, isto é, a continuidade da tarefa de traduzir mesmo estando ciente da falha, do fracasso desse projeto. Em outras palavras, a renúncia ao ideal da tradução perfeita. Dessa forma, para Ricœur, é possível assumir as duas tarefas aparentemente discordantes de “levar o autor ao leitor” e de “levar o leitor ao autor”, expressões que Ricœur toma emprestadas de Schleiermacher. 

Estando o tradutor livre da angústia originada dessa falta, surge-lhe, de acordo com Ricœur, o prazer de traduzir: “E é esse luto da tradução absoluta que faz a felicidade de traduzir. A felicidade de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela aceita a distância entre a adequação e a equivalência sem adequação. Nisso está sua felicidade”. E conclui: “Admitindo e assumindo a irredutibilidade do par do próprio e do estrangeiro, o tradutor encontra sua recompensa no reconhecimento do estatuto incontornável da dialogicidade do ato de traduzir como o horizonte razoável do desejo de traduzir. A despeito da agonística que dramatiza a tarefa do tradutor, este pode encontrar sua felicidade no que eu gostaria de chamar de hospitalidade linguística”. 

No segundo texto, a aula inaugural de Ricœur na Faculdade de Teologia Protestante de Paris, publicada em artigo na revista Esprit em 1999, o autor retoma os temas abordados em “Desafio e felicidade da tradução” aprofundando-os. Nele, sobressai a defesa do abandono da dicotomia tradutibilidade versus intradutibilidade em favor da alternativa fidelidade versus traição. Na raiz da escolha, novamente o fracasso da tradução perfeita, fato que paralisaria o tradutor, impedindo o trânsito dos textos entre falantes de línguas diferentes, cuja diversidade é ainda incompreensível para o homem e motivo do mito da torre de Babel, belamente emiuçado por Ricœur, e do sonho da protolíngua, a língua perfeita, universal. Para Ricœur, seguindo George Steiner, autor de Após Babel, “compreender é traduzir”. Mais que isso: “Sem a prova do estrangeiro, seríamos sensíveis à estranheza de nossa própria língua? (...) sem essa prova, não seríamos ameaçados de nos fechar na amargura de um monólogo, a sós com nossos livros? Honra então à hospitalidade linguística”. 

Ainda em “O paradigma da tradução”, de novo sob clara influência de Freud, Ricœur explica o ato de traduzir, acima de tudo, como um desejo. Desse impulso, segundo o filósofo francês, origina-se o trabalho de tradução elaborado por Goethe, o grande clássico; Von Humboldt e os românticos Novalis, os irmãos Schlegel, Schleiermacher, tradutor de Platão, e Hölderlin, tradutor de Sófocles. Mais recentemente, Walter Benjamin, o herdeiro de Hölderlin, segundo Ricœur. E por trás de todos esses expoentes, ressalta o autor, Lutero, tradutor da Bíblia para o alemão movido por sua vontade de “germanizar” as escrituras sagradas, antes restritas ao latim de São Jerônimo. “O que esses apaixonados por tradução esperaram de seu desejo? Aquilo que um deles chamou de alargamento do horizonte de sua própria língua – e ainda o que todos chamaram de formação, Bildung, isto é, ao mesmo tempo configuração e educação, e em primeiro lugar, se ouso dizer, a descoberta de sua própria língua e de seus recursos inaproveitados”. Mais uma vez, portanto, na falta se esconde a origem do desejo.

Fechando a coletânea, no artigo “Uma ‘passagem’: traduzir o intraduzível”, inédito até 2004, Ricœur volta-se uma vez mais à impossibilidade de verter plenamente uma mensagem verbal de uma língua a outra, o que o leva a continuar defendendo a ideia de hospitalidade linguística. Para ele, no entanto, nesse processo, mais do que dominar as características fonéticas, morfológicas, sintáticas e semânticas das línguas de trabalho, cabe ao tradutor se familiarizar com a cultura dos povos falantes dessas línguas. Assim, de acordo com Ricœur, “a tarefa do tradutor não vai da palavra à frase, ao texto, ao conjunto cultural, mas o inverso: impregnando-se por vastas leituras do espírito de uma cultura, o tradutor desce novamente do texto à frase e à palavra”. 

Shakespeare 
Justamente por esse caráter subjetivo da tradução, longe da idealizada correspondência conceitual entre as línguas, é que os resultados obtidos pelos tradutores são tão díspares. Para comprovar esse fato, ainda segundo Ricœur, nada melhor do que comparar as incessantes traduções dos grandes textos, dos grandes autores, como a Bíblia, Homero, Shakespeare, Dostoiévski, Goethe... A cada tradução, revela-se tanto do texto original quanto do tradutor e de seu ambiente cultural. E, ciente de suas singularidades e limitações, o bom tradutor as assume – e mesmo baseia nelas seu projeto. É o que faz com propriedade o poeta Geraldo Carneiro no livro bilíngue O discurso do amor rasgado: poemas, cenas e fragmentos de William Shakespeare. 

Nessa publicação, o poeta-tradutor se propõe a deixar de lado a erudição, tão presente em tantas outras versões dos textos shakespearianos nas mais diversas línguas, em favor da “eros-dicção” de Shakespeare, “a qualidade que suas palavras guardam de tocar as pessoas e suscitar paixões”. Sua meta é fazer com que as palavras do autor inglês cheguem aos olhos e ouvidos dos leitores com certo frescor, “como se algum poeta popular tivesse acabado de cantá-las no balcão de uma Julieta pós-moderna”. Para isso, Geraldo Carneiro renuncia às palavras empoladas e arcaicas, à sintaxe difícil (tão comuns nas traduções em língua portuguesa de Shakespeare e que só afastam os interessados) e privilegia um vocabulário e um fraseado mais familiares ao brasileiro contemporâneo, mas sem empobrecer a poética shakespeariana. Dessa forma, confirma uma ideia com que Ricœur flerta em “Uma ‘passagem’: traduzir o intraduzível”: a de que “só um poeta pode traduzir um poeta”.

A seleção de Geraldo Carneiro é constituída de cinco sonetos (15, 18, 65, 76 e 116) e de trechos das peças Romeu e Julieta, A tempestade, Antônio e Cleópatra, Os dois cavalheiros de Verona e Trabalhos de amor perdidos. Como não poderia deixar de ser, alguns dos mais belos textos shakespearianos sobre os prazeres e dores do amor, suas angústias e esperanças, sua salvação e perdição. No soneto 76, que a abre a coletânea, a constância da temática amorosa: “Por que meu verso é sempre tão carente/ De mutações e variação de temas?/ Por que não olho as coisas do presente/ Atrás de outras receitas e sistemas?/ Por que só escrevo essa monotonia,/ Tão incapaz de produzir inventos/ Que cada verso quase denuncia/ Meu nome e seu lugar de nascimento?/ Pois saiba, amor, só escrevo a seu respeito/ E sobre o amor, são meus únicos temas,/ E assim vou refazendo o que foi feito/ Reinventando as palavras do poema./ Como o sol, novo e velho a cada dia,/ O meu amor rediz o que dizia”. 

Na outra ponta, fechando o livro, logo em seguida ao fim trágico dos jovens amantes Romeu e Julieta, o soneto 116, um alento sobre a perenidade do amor verdadeiro: “Não tenha eu restrições ao casamento/ De almas sinceras, pois não é amor/ O amor que muda ao sabor do momento,/ E se move e remove em desamor./ Oh, não, o amor é marca mais constante/ Que enfrenta a tempestade e não balança,/ É a estrela-guia dos batéis errantes,/ Cujo valor lá no alto não se alcança./ O amor não é bufão do Tempo, embora/ Sua foice vá ceifando a face a fundo./ O amor não muda com o passar das horas,/ Mas se sustenta até o final do mundo./ Se é engano meu, e assim provado for,/ Nunca escrevi, ninguém jamais amou”.

A iniciativa de Geraldo Carneiro, que há 30 anos falha (no sentido de Ricœur) em traduções de Shakespeare, cumpre o importante papel não apenas de hospedar em português brasileiro textos do maior escritor em língua inglesa, mas sobretudo de ampliar nossas versões da obra shakespeariana, ainda pouco traduzida no Brasil em comparação com os grandes autores franceses, por exemplo. Um fato que não passou despercebido a Millôr Fernandes, outro poeta-tradutor do Bardo e maior incentivador dessas traduções feitas por Geraldo Carneiro. Que mais tradutores compartilhem desse desejo e se aventurem nessa passagem de traduzir o intraduzível. 

SOBRE A TRADUÇÃO
De Paul Ricœur
Editora UFMG, 72 páginas, R$ 24

O DISCURSO DO AMOR RASGADO
Poemas, cenas e fragmentos de William Shakespeare
Tradução: Geraldo Carneiro
Editora Nova Fronteira, 136 páginas, R$ 39,90

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