sábado, 23 de fevereiro de 2013

Xico Sá


folha de são paulo
Os cinco minutos de Kevin
Todos nós nos imaginamos automaticamente na turma do bem incapaz de certas atitudes
Amigo torcedor, amigo secador, precisamos falar sobre o Kevin, mas não encontrei outro modo, depois de tantos comentários, passionais ou racionais, a não ser o de sugerir uma operação psíquica aparentemente simples: colocar-se no lugar do outro, trocar de papéis nesse drama. Parece simples, mas nem tanto, senão vejamos.
Coloque-se no lugar dos pais do garoto, a quem sobrou apenas sair de Cochabamba, na madrugada de ontem, para buscar o corpo em Oruro. Embora roguem por justiça, não há punição que console. O que é um torneio de futebol diante da tragédia, mesmo que a Libertadores?
Coloque-se no lugar do torcedor corintiano que costuma ver o seu time na paz, já comprou ingressos para a continuidade da taça e não terá o direito de testemunhar o time em campo? Este foi castigado como se o crime fosse de toda a multidão alvinegra, crime da metonímia invertida, o todo paga pela parte.
Coloque-se no lugar da direção da Conmebol e imagine se a entidade ficasse enrolando e não definisse, imediatamente, uma pena, mesmo que provisória? Usou o que havia de evidência: vídeos mostram que o foguete proibido foi disparado da torcida do Corinthians. O regulamento prevê o castigo.
A pena é incompleta, óbvio. E o San José, mandante do jogo? E a segurança falha que, repetindo o que ocorre no Brasil, deixou entrar no estádio as mochilas fumegantes?
Agora a parte mais difícil do exercício, a menos que você seja um leitor de um estrangeiro chamado Alberto Camus, escritor e o mais solitário dos goleiros do mundo. Coloque-se no lugar do suposto disparador do rojão. Pense que ele está acostumado a fazer disparos idênticos, rotineiramente, no Pacaembu, no Morumbi, na Vila Belmiro. Até então não havia ferido ninguém. Nunca. Era apenas mais uma destas centenas de coisas proibidas que na prática são relaxadas ou fogem do controle. Pense na merda.
É difícil fazer esse rodízio altruísta e se colocar na pele do outro. Ainda mais na pele do suposto assassino que irá mofar no subsolo das prisões da Bolívia.
Todos nós nos imaginamos automaticamente na turma do bem incapaz de certas atitudes. Antes que os bonzinhos nos atirem pedras, mesmo que virtuais, vos digo: sou a favor de que os culpados sejam punidos, mas não me furto ao exercício do absurdo que é a existência.
Coloque-se, amigo, também na pele dos jogadores do Corinthians. Como conseguir fazer que as pernas andem no estádio vazio depois da invasão japonesa? Silêncio não move moinhos alvinegros.
Sim, qualquer exercício é nada, apenas fanatismo futebolístico, diante da dor do pai e da mãe. Estão impedidos de ver o Kevin não somente durante a Libertadores-2013. O menino viu apenas cinco minutos do seu time do peito. O caixão foi fechado para sempre.

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