sábado, 16 de março de 2013

A casa do Modernismo - Flávia Ayer‏

Imóvel na Pampulha que foi residência de JK e depois de casal de amigos do presidente será aberto ao público no fim do ano. Projetada por Niemeyer, edificação teve mobília restaurada


Flávia Ayer

Estado de Minas: 16/03/2013

Telhado borboleta e jardins de Burle Marx, que estão sendo restaurados, são características marcantes do imóvel às margens da lagoa


As doces memórias de uma casa de avós, às margens da Lagoa da Pampulha, se misturam à história de Belo Horizonte e a ícones da arquitetura e do design. O recanto onde Joubert Guerra e Juracy Brasiliense Guerra recebiam os netos nos almoços de domingo era a antiga residência de descanso do presidente Juscelino Kubitschek, erguida em 1943. Amigos de JK, ainda nos anos 1950, os Guerra compraram o imóvel projetado por Oscar Niemeyer e preservaram não somente joias como o jardim de Burle Marx e um painel de Alberto Volpi, na varanda. O interior da casa de dois andares guarda relíquias do mobiliário modernista que, além de peças cobiçadas, são documentos de uma época.

Comprado em 2006 pela prefeitura, esse tesouro finalmente vai sair da esfera particular e se revelar a visitantes, com a criação do museu Casa Kubitschek. Depois de oito anos fechado por causa de impasses envolvendo seu restauro e destinação, o espaço – tombado pelo patrimônio nacional, estadual e municipal – será inaugurado no fim do ano e não se limitará à história do presidente. “Aqui funcionará o museu da habitação moderna e da cultura modernista. O mobiliário vai ser a base para dialogar com a literatura, música e artes plásticas”, explica o gestor da casa, André Mascarenhas. “Vamos recuperar a história da cidade a partir desse contexto”, completa.

Móveis que durante o período de indefinição sobre o destino da edificação ficaram num dos cômodos voltam a brilhar com a restauração e darão suporte para recontar a história da época. O Estado de Minas acompanhou os resultados desse trabalho, que será concluído em maio. O modernismo é fio condutor das cerca de 150 peças, entre elas poltronas, armários, mesas e camas, a maioria comprado de JK e conservado por dona Juracy.

A mobília compõe com elegância a casa de arquitetura orgânica de Niemeyer, que recebeu telhado no formato borboleta e a primeira piscina numa residência em BH. Quem lembra dos detalhes é um dos netos, o publicitário Marcos Guerra, de 49 anos. “Na sala especial, um alto pé-direito foi por muito tempo considerado o maior vão livre da América Latina, não sei se só de residências”, conta. A casa é ainda um festival de móveis de “pés palito”, formas simples e madeiras nobres.

Como numa viagem no tempo, o restaurador e designer João Caixeta vai levantando os panos que protegem a mobília. Assinada pelo designer Carlo Hauner, a mesa redonda de centro com tampo de vidro e pé palito data de 1950, mas se mantém atual para qualquer casa contemporânea. Bom-gosto é atemporal e isso a Casa Kubitschek tem de sobra: a mesa de jantar para oito ou 10 cadeiras tem trabalho de marchetaria – ornamentação de superfícies planas com madeira e outros materiais.

Simplicidade Ao subir as escadas com degraus fixos à parede, já no segundo andar da casa de três quartos e 680m², o visitante se depara com um console, móvel usado para guardar vitrola, televisão e os discos. Ao lado, há uma mesa de telefone reta, em madeira, acoplada a um banco, também da década de 1950. A peça da italiana Lina Bo Bardi é uma das preciosidades descobertas durante o restauro, mas, para Caixeta, o mais especial da mobília do futuro museu é o que seu conjunto representa. “Apesar da modificação do próprio uso, dona Juracy cultivou o real sentido da preservação. É um acervo único de um recorte de uma época que buscou toda a inspiração numa nova nação e no progresso e se revela pela simplicidade das linhas e a pureza do desenho”, diz.

Continuando o percurso pelo imóvel, mais surpresas. No quarto do casal, primeiramente de JK e dona Sara, e, depois de Joubert e Juracy, a cama, a penteadeira, armários e mesas de cabeceira, apesar dos pés palito, trazem vestígios de um desenho colonial, característica da transição de estilos. A sala da lareira – sim, fazia frio na Pampulha na década de 1940 – conta com mesa de bilhar de JK em estilo art déco. Para contrastar, bem em frente, um barzinho de tecido sintético verde e fórmica estampada vermelha, novidade na época, mostra que o artificial também pode ser belo.

A antiga sala de jogos tem poltronas de tecido coco ralado, uma delas revestida com detalhes de chitão especialmente personalizada pelas mãos delicadas de dona Juracy. “O mais sensacional disso é que a Casa Kubitschek dá acesso à vida privada, à história que se passou por aqui. Por isso, não nos interessa trocar tecido e tirar marcas do tempo, mas preservar essas peças, que são, na verdade, documentos”, diz o restaurador.


"É um acervo único de um recorte de uma época que buscou toda a inspiração numa nova nação e no progresso e se revela pela simplicidade das linhas e a pureza do desenho" - João Caixeta, designer e restaurador de móveis da casa na Pampulha

Sete décadas de histórias

Uma casa não é feita apenas de decoração, mas sobretudo da vida que ali habita. Se, por um lado, o imóvel na orla da Pampulha é reconhecido por ter sido o retiro de descanso particular do presidente Juscelino Kubitschek quando ele ainda era prefeito da capital, quem de fato viveu e cuidou de tudo foi o conterrâneo de JK Joubert Guerra, que foi prefeito de Diamantina e presidente do Tribunal de Contas, e sua esposa, Juracy Brasiliense Guerra.

“Mesmo depois da venda, Juscelino continuou frequentando a casa e chegava mesmo sem avisar”, conta o publicitário Marcos de Souza Guerra, de 49 anos, neto de Joubert e Juracy. “Sei que minha avó guardava relíquias no closet, entre as quais cartas pessoais de Juscelino, padrinho de casamento de meus pais”, revela. O casal ia à Pampulha nos fins de semana, onde recebia a família para os tradicionais almoços de domingo.

“Íamos todo fim de semana e minha avó, muito espontânea, contava das visitas de estrangeiros e excursões que sempre paravam na porta da casa sem avisar. Ela sempre abria as portas”, lembra. Pouco depois da morte de Joubert, em 1977, um ano depois de JK, Juracy se mudou definitivamente para o imóvel, onde viveu seus últimos dias. Ela morreu em 2004, aos 95 anos.

Ao longo desse tempo, Juracy se dedicou a preservar a obra de arte na qual morava. Com saudade na fala, a escritora Cris Guerra, de 42 anos, neta do casal, conta que a avó “morreu catando folhas”. Uma de suas paixões era o jardim projetado por Burle Marx. “Minha avó era uma mulher moderna, um poço de conhecimento e cultura. Apreciava a decoração e sempre fez de tudo para manter esse ambiente. Não havia por que mudar as coisas”, conta.

Para quem cresceu nesse espaço e aprendeu a valorizar tantas preciosidades, a expectativa é de que o museu cumpra de fato sua função. “Quando fomos desapropriados do imóvel nem chegamos a questionar. Temos uma paixão enorme pela casa e era uma alegria saber que ia ser preservada”, afirma Cris. Marcos Guerra completa: “Resta a nós e aos cidadãos brasileiros vermos entregue o que o poder público projetou como grande presente: O 'museu JK'.” E nesse J que é de Juscelino, certamente Juracy e Joubert têm seu lugar.

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