domingo, 17 de março de 2013

Dentro do Bosque sagrado [Francisco Brennand ]

folha de são paulo

Aos 85 anos, escultor e pintor Francisco Brennand é tema de documentário e fala em entrevista sobre morte e arte
FABIO VICTORENVIADO ESPECIAL AO RECIFEFrancisco Brennand já tem pronta uma urna funerária de cerâmica para receber suas cinzas quando for cremado.
A três meses de completar 86 anos, o ceramista e pintor pernambucano trata do assunto sem rodeio.
O objeto, que ele próprio confeccionou, fica em seu ateliê no parque de esculturas que mantém nos arredores do Recife, um recanto à beira do rio Capibaribe entre vestígios de mata atlântica que se tornou um dos principais pontos turísticos da cidade -no ano passado recebeu 23 mil visitantes.
Essa olaria herdada do pai, que Brennand reconstrói desde 1971 e onde reúne sua produção artística marcada por uma mitologia particular trágica e sexual, é chamada por ele de bosque sagrado.
Basta conversar com o artista, entretanto, para perceber que a morte não lhe cai bem. Lúcido, sagaz e com a erudição intacta, ele recebeu a Folha para falar do documentário "Francisco Brennand", que estreou nos cinemas anteontem.
Mas tratou de mil temas; de arte, velhice e morte, brigas -como a com o seu primo Ricardo Brennand, que criou um complexo cultural a poucos quilômetros do dele com vasto acervo sobre o período holandês e uma coleção de armas brancas-, cinema, sexo e política.
Dirigido pela sua sobrinha-neta Mariana Fortes Brennand e com fotografia de Walter Carvalho, o filme parte dos diários que o ceramista escreve há 64 anos para tentar desvelar parte do mistério em torno deste ermitão da arte brasileira, algo que a reportagem também buscou em quase cinco horas de uma conversa cujos principais trechos estão a seguir.
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Folha - O que o sr. achou do resultado do filme?
Francisco Brennand - O filme é um documentário e, como tal, acredito que ela [Mariana] se saiu muitíssimo bem. Agora, é o documento a trajetória de um artista de 85 anos, e acho o ritmo do filme lento. Lento como eu estou. Eu posso aqui estar falando de uma maneira desembestada, mas na realidade meus movimentos não são assim.
Se eu ouso fazer alguma restrição ao documentário é porque também faço a todos os filmes que já foram feitos sobre a vida de pintores. Para mim, todos absolutamente caricatos e decepcionantes.
Por que o sr. considera o diário tão importante para compreensão de sua vida e obra?
O que me leva a pintar, na realidade, são as palavras, tanto que meus desenhos e meus quadros quase todos têm títulos. Tenho horror de que tem a pretensão de batizar obras de "sem título". Isso é de um orgulho espiritual inacreditável. Como é que um quadro pode ser sem título, ou "composição número 1"? Isso se faz em música, não em pintura.
A publicação do seu diário é uma novela que se desenrola há anos. Por que ele não foi editado ainda?
É uma novela sobretudo porque o movimento editorial no Brasil -e não sou eu quem diz, são os escritores quem reclamam- está muito ligado a problemas de vendas, de best-sellers. E se eles torcem o nariz para grandes escritores e jovens escritores e poetas, imagine para um pintor. Não devem pensar que um diário de um pintor seja grande coisa. Mas acontece que é, porque está aí toda a minha vida. Desde que viajei para a Europa, em 1949, que eu escrevo. Minhas influências literárias e artísticas, todo movimento intelectual, físico e espiritual de minha vida está dentro do diário.
Como o sr. encara a proximidade da morte? Tem medo de morrer?
Eu tenho uma urna [funerária]. Primeiro, fiz o meu testamento. Isso não é destemor da morte nem um desafio. Apesar de sabermos que todos morremos, lá no fundo nós não acreditamos, pensamos que somos imortais.
É como se pudéssemos adiar indefinidamente o fatal. E, quando ele chegar, vamos ser pegos de surpresa, mas o temor vem de maneira muito mais sutil, através do pânico por outras razões, através da sua fraqueza para defender aqueles que amamos e por quem somos responsáveis. Tudo isso nos aterroriza e é uma espécie de morte.
Lido com fogo e com fornos há muitos anos, então quero me transformar naquilo que é, vamos dizer, uma cerâmica. Então vou ser cremado, parte de minhas cinzas ficará nessa urna e o restante será jogado lá na casa do [engenho] São Francisco, onde vivi, de onde veio a minha família.
O sr. teve muitas mulheres, sempre pareceu ter uma sexualidade muito intensa. Como é que a velhice influi nisso?
Leonardo [Da Vinci] dizia que a pintura é coisa mental. Na velhice mais do que nunca eu verifico que sexo é uma coisa mental. Quando eu vejo um filme pornográfico, de imediato verifico como eles são tolos. Como é que pode existir pornografia sem palavras? No filme pornográfico ninguém fala, só faz "ui, ui, ui, oh, God". Isso não é nada. O terrível são as palavras. Sexo sem palavra não existe.
O sr. teme que a oficina seja invadida?
[após longa divagação sobre sua ligação com a chamada Restauração Pernambucana, a expulsão dos invasores holandeses no século 17] Eu tenho um primo [Ricardo Brennand] que construiu um castelo e comprou uma biblioteca sobre o período holandês no Brasil. É uma bela biblioteca. Hoje em dia, já se diz no Recife, se alguém diz que vai 'visitar o Brennand': 'mas qual deles, o brasileiro ou o holandês?' Felizmente eu sou o brasileiro e ele é o holandês.
De onde vem a divergência entre vocês?
Primeiro de tudo porque eu nasci do lado de lá [do rio] e ele nasceu no Cabo [cidade a 35 km do Recife], ele é filho de um irmão de meu pai com uma irmã de minha mãe. Quer dizer, eu nem posso chamá-lo de impostor, porque ele tem o mesmo sangue. Acho apenas que ele despertou muito tardiamente para as artes. Ele e o pai desprezavam toda e qualquer coisa que fosse ligada à arte. E agora, de repente, dado ao meu sucesso nesse setor, ele resolve também incursionar pelo mundo das artes, e isso me criou dificuldades.

    RAIO-X FRANCISCO BRENNAND
    VIDA
    Nasceu em 11 de junho de 1927, no Recife, descendente de ingleses. Casado pela quarta vez, tem cinco filhos, o caçula com 20 anos
    OBRA
    É pintor, desenhista, ceramista e escultor.
    Fez estudos em Paris nos anos 1940/1950. Participou de quatro edições da Bienal de São Paulo e da Bienal de Veneza de 1990

    "Só faço cerâmica porque sei pintar", afirma Brennand
    Escultor se ressente do desconhecimento sobre a sua obra em pintura e desenho, eclipsada pela cerâmica
    Artista critica modelo que permite venda de tela de Beatriz Milhazes por R$ 4 mi enquanto bons pintores somem
    DOS ENVIADOS A RECIFEA autodefinição como um homem feudal, sua obra de pendor mitológico e o gosto pelo século 19 fazem crer que Francisco Brennand parou no tempo. É uma meia verdade.
    No ateliê abarrotado de livros do artista veem-se volumes de autores atuais como Roberto Bolaño -por quem é encantado-, Ricardo Piglia e Enrique Vila-Matas. Discorre com propriedade sobre temas como a morte recente de Hugo Chávez e o governo Obama -gosta do americano a ponto de na última eleição ter colocado um cartaz dele na entrada da sua oficina.
    Por outro lado, este homem que conviveu com Léger, Balthus (uma de suas maiores influências, com quem divide o gosto por ninfetas), Lasar Segall e Cícero Dias desdenha da arte conceitual contemporânea. "Não conheço."
    (FABIO VICTOR)
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    Folha - Uma passagem do filme remete a um pesadelo em que, no obituário do sr., é ignorada sua obra em pintura. O crítico Weydson Barros Leal já mencionou o "avassalador desconhecimento" dessa vertente mesmo entre o público de arte. Por que isso ocorre?
    Brennand - Porque a reconstrução da oficina, este bosque sagrado que eu criei, talvez um bosque único dentro da arte moderna de qualquer parte do mundo, deu relevo ao meu trabalho cerâmico, deixando a pintura escanteada. As gerações foram se renovando, e os novos não teriam obrigação de saber o que eu fazia em 1940, 1950.
    Mas o sr. se considera antes de tudo um pintor, não é isso?
    Sim. Só faço cerâmica porque sei pintar. E, quando faço um mural de cerâmica, não sou um ceramista, sou um pintor pintando sobre cerâmica. Então um pintor medieval que pintava sobre madeira não era um pintor? Só veio a ser pintor quando pintava a óleo sobre tela?
    A cerâmica Brennand sempre decorou residências abastadas do Recife, seja em pisos, azulejos ou objetos. Em que medida esse lado comercial do seu trabalho prejudicou sua reputação como artista?
    Não vou dizer que prejudicou, mas criou ambiguidades. A importância empresarial da família muitas vezes foi motivo de mal-entendidos a respeito do meu trabalho. Por exemplo, há muita gente que pensa que sou milionário. Eu tenho irmãos milionários, mas eu não sou milionário.
    Um bairro planejado de alto padrão do Recife foi batizado de Aphaville Francisco Brennand. Em nome do que o sr. autoriza homenagens assim?
    Isso foi coisa que minhas filhas fizeram e já está feito. Tem outras coisas mais prejudiciais sobre as quais eu também não posso fazer nada.
    Por exemplo?
    Uma série de mal-entendidos a respeito de ter ou não ter dinheiro.
    O sr. não é um homem rico?
    Não. Luto com dificuldade para sobreviver. Vivo do meu trabalho. Não tenho rendas.
    O sr. já ouviu falar em artistas contemporâneos como Damien Hirst, Jeff Koons, Cindy Shermann, Matthew Barney?
    Não, não, de jeito nenhum.
    E entre os brasileiros, já ouviu falar de Adriana Varejão, Tunga, Nuno Ramos, Waltércio Caldas...
    Já ouvi falar, mas não conheço o trabalho.
    Há obras de artistas brasileiros que atingiram R$ 4 milhões, como uma tela de Beatriz Milhazes. Conhece o trabalho dela?
    Já vi. É uma que tem uns elementos decorativos, né? Isso aí é um problema de mercado. Penetrando nos segredos dos mercados nova-iorquino e internacional, das grandes galerias e casas de leilão, você está integrado. Uma vez integrado, você vai longe.
    O que acha desses valores?
    Deve irritar as pessoas que ainda... Por exemplo, um pintor como Siron Franco, um grande artista, admirável pintor. E outros pintores de verdade no Brasil. Aqui [em Pernambuco] tem Ismael Caldas, tem João Câmara. Esses sim, deveriam estar lá no mercado de Nova York, atingindo esses preços, e não essa que faz aqueles circulozinhos redondos se interpenetrando como se fossem bolhas de sabão.

      CRÍTICA
      Documentário perde relevância por falta de tom crítico à obra
      FABIO CYPRIANOCRÍTICO DA FOLHAO pernambucano Francisco Brennand conseguiu realizar o sonho de grande parte dos criadores: ter independência financeira para dedicar-se à sua obra e construí-la do jeito que bem entendesse.
      É assim que pode ser visto o impressionante conjunto de esculturas e obras em cerâmica que ocupam uma antiga olaria de sua família, que ele passou a restaurar em 1971.
      Lá, com obras organizadas numa estrutura algo próxima às formas orgânicas do espanhol Antoni Gaudí (1852-1926), cuja obra conheceu nos anos 1950, Brennand ergueu um dos maiores "site specifics" (obras criadas para lugares específicos) no país.
      As esculturas delirantes chegaram a levá-lo a representar o Brasil na Bienal de Veneza, em 1990, e os anos em torno dessa data representam seu período de maior reconhecimento no circuito artístico. Hoje, porém, quase não é visto em mostras importantes.
      Talvez, a ausência de limites, graças justamente à sua independência, acabe sendo o motivo de seu confinamento na velha olaria, que abriga até um espaço expositivo, a "Accademia", aberta em 2003.
      Sem precisar vender, sem sequer precisar expor fora de seu território, Brennand não dialoga com a cena artística, e sua obra parece confinada à leitura que ele mesmo impõe, entre o artesanal e o exótico.
      O documentário "Francisco Brennand", dirigido por Mariana Brennand Fortes, reforça a ideia. Construído por meio de fragmentos do diário do artista, narrado, contudo, pela voz da atriz Hermila Guedes, o filme não busca uma abordagem crítica da obra, mas segue na construção mítica que ele mesmo vem dando ao seu trabalho, como uma artista moderno fora de sua época.
      Mas o mais grave é que o filme abre demasiado espaço às pinturas de Brennand, a parte menos importante de sua obra, já que muito menos consistente que seu trabalho em cerâmica, esse sim original.
      Nesse sentido, o documentário poderia ter um pouco de distanciamento, deixando de colar-se de forma tão inquestionável ao discurso do artista. O monumental e enigmático conjunto de cerâmicas parece melhor sem "Francisco Brennand", um documentário piegas.

      Acesso a diários do tio-avô abriu porta para diretora fazer filme
      DO EDITOR-ADJUNTO DA “ILUSTRADA”Mariana Brennand Fortes estava apreensiva na noite da última terça-feira, quando o documentário que dirigiu sobre seu tio-avô teve pré-estreia no cinema mais tradicional do Recife, com a presença do próprio homenageado, algo raro para alguém recluso como ele, que na véspera revelara à Folha o desconforto com a situação.
      "Eu estava me preparando para que ele pudesse desistir de ir na última hora", contou Mariana, 32. Mas o artista foi, e tudo correu bem.
      Tanto quanto os dois prêmios recebidos na última Mostra de Cinema de São Paulo (Itamaraty de melhor documentário e Abraccine de melhor filme), a ida do tio-avô à première coroou, para ela, um trabalho de 11 anos.
      Em 2002, a diretora, filha do ex-senador Heráclito Fortes e de Mariana Brennand (filha de Cornélio, irmão de Francisco) e que estudou cinema nos EUA, propôs o projeto ao artista, que de início relutou. O contato com a sobrinha-neta até ali sempre fora esporádico.
      A partir do diário do ceramista, cujo acesso lhe foi facultado, ela quebrou a resistência. "Vi que, naquele momento, podia traçar um retrato do artista em seu ambiente de trabalho."
      Mariana diz ter lido cinco vezes as 2.000 páginas digitalizadas do diário, que agora trabalha para publicar, o que seria a realização de um velho desejo do tio-avô.

        EXPOSIÇÃO
        Sesc abriga mostra do artista
        O Sesc Interlagos (av. Manuel Alves Soares, 1.100, tel.: 0/xx/11/5662-9500), em São Paulo, recebe até 30/6 a exposição "O Escultor Francisco Brennand - Milagre da Terra, dos Peixes e do Fogo". Com curadoria de Emanoel Araujo, diretor do Museu Afro Brasil e um dos grandes conhecedores da obra do artista, a mostra reúne mais de 60 obras em cerâmica. Abre ao público de quarta a domingo (e feriados), das 10h às 16h30. O acesso é grátis para comerciários, idosos e crianças de até 12 anos. Os demais pagam de R$ 1,50 a R$ 7.

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