sábado, 9 de março de 2013

Vozes da África - João Paulo

Estado de Minas 09/03/2013


Este é o romancista nigeriano Chinua Achebe, um dos melhores escritores contemporâneos. Você não sabe o que está perdendo
A África é o continente mais próximo da alma brasileira e talvez o mais distante de nossa consciência. Conhecemos muito pouco da África e dos africanos, de sua história e cultura, de seus problemas e realizações. Mesmo com laços tão fortes, que nos atam na carne pela presença do povo em nossa formação – em sangue, emoção e inteligência –, fizemos e fazemos questão, séculos afora, de negar o que nos mostra o espelho. O mesmo processo nos afastou dos hispano-americanos, que, só muito recentemente, passaram a habitar nossos ideais de convivência e felicidade.

No caso da África, a questão é ainda mais profunda: não apenas desconhecemos o continente, seja por razões ideológicas ou de pura ignorância, como desdenhamos de suas conquistas. É sempre mais fácil ver no africano o povo indistinto, sem identidade, marcado pela miséria e falta de perspectivas. Até mesmo a sensibilidade à cultura negra, em suas múltiplas manifestações, vem quase sempre tingida de uma condescendência daninha, armada sobre preconceitos.

Assim, louva-se a música africana, mas apenas pelo ritmo (como se harmonia e melodia fossem sofisticadas para ouvidos tribais). A mesma operação de escalonar a contribuição estética por fatias valorativas se percebe no caso das outras artes. Os africanos seriam bons na intuição e nos ritmos do corpo; indigentes em termos de reflexão e complexidade. No caso da literatura, há uma aceitação de tudo que aponta para a narrativa pura e cegueira para as outras formas de expressão. Mesmo na valorização dos escritores que surgiram no momento da descolonização que se seguiu à Segunda Guerra, o peso era dado mais pela ideologia do que pela criação.

A aproximação dos povos, num contexto de simultaneidade e globalização, nem por isso foi capaz de superar o olhar discriminatório acerca do continente. Temos pronta a crítica à política, traduzida quase sempre como de natureza tribal, mas pouca sensibilidade para ações internacionais concertadas em nome da verdadeira liberdade dos povos. Como não há um mercado imediatamente lucrativo, como o do petróleo, a solidariedade internacional é barrada pelo peso dos interesses econômicos.

Por isso, sempre que surgem livros de autores africanos ou de brasileiros interessados em dar a conhecer o continente, a ocasião é propícia para questionamento da nossa orgulhosa ignorância.

História e ficção Dois livros lançados recentemente incorporam informações importantes sobre a África, com especial interesse para os brasileiros. O primeiro deles é Imagens da África, de Alberto da Costa e Silva (Editora Penguin Companhia), um compêndio de textos sobre o continente. A seleção, obra de profunda erudição, vale por uma biblioteca inteira. O historiador parte dos primeiros registros ocidentais sobre a África, na Antiguidade Clássica, chegando ao século 19 depois de atravessar a Idade Média e o período moderno. Como era de se esperar, são testemunhos que mostram como os forasteiros, ao conhecer o continente negro, carregam muito de sua visão de mundo. Dos primeiros registros indiretos (quando não se sabia da existência de vida além do Saara) aos viajantes que percorreram a África em busca de riqueza e conhecimentos, tudo vai registrado na voz dos cronistas, geógrafos, navegadores e viajantes.

Por distintas vozes, o leitor vai conhecendo as primeiras descrições da região subsaariana, obra dos responsáveis pela expansão islamita; acompanha a exploração e o tráfico de escravos e matérias-primas da região; percebe a maneira como religião, ciência e cobiça se dão as mãos para compor um painel marcado pela visão preconceituosa dos colonizadores brancos, com a consequente destruição das culturas originais. Alberto da Costa e Silva faz uma seleção delicada e arguta, como quem grifa em seus livros de cabeceira os trechos mais significativos já escritos sobre a grande história do continente.

Nas palavras de Costa e Silva, em seu livro há de tudo: “Paisagens, grupos humanos, indivíduos e animais se sucedem nestas páginas, nas quais encontrei lugar para os nascimentos, os casamentos e a morte, para as festas e os exércitos, para os reis, os mercadores e os escravos, para as comidas e as roupagens, para a casa e o roçado, o tear e a forja. Pedaços de livros sem cimento a ligá-los, assemelham-se às pedras sossas com que se erguem os zimbabués”. Palavras poéticas e sábias, que denunciam nosso desconhecimento sobre nós mesmos e nos incitam a conhecer um pouco melhor nossas origens.

O outro livro que merece atenção é o romance A paz dura pouco, de Chinua Achebe (Companhia das Letras), publicado originalmente em 1960. No registro ficcional, Achebe traz a África contemporânea ao leitor, mas com um estilo sublime, que mescla literatura e narrativas embaladas por uma tradição mágica. O romancista nigeriano, nascido em 1930, é autor de vários romances e ensaios, com destaque para A flecha de Deus e O mundo se despedaça, já lançados no Brasil pela mesma editora. É considerado por muitos o fundador da moderna literatura africana, sobretudo pela capacidade de dar à expressão tradicional do continente o mesmo valor da escrita moderna em inglês, seu idioma de expressão. Esse virtuosismo estilístico de Chinua Achebe está plenamente realizado em A paz dura pouco.

O romance narra a história de Obi Okonkwo, um jovem talentoso que ganha uma bolsa de estudos na Inglaterra e volta de lá como uma grande promessa para seu povo. Herdeiro da tradição e emissário da modernidade, ele se vê dividido entre dois mundos e formas de vida. Sua volta à Nigéria e o trabalho que assume como funcionário público parecem tirá-lo da mira do passado, mas se vê envolvido com questões como a corrupção que o cerca em todos os momentos. Nessa hora, instala-se um conflito ético entre o que pode representar sua conquista pessoal e o que lhe ditam valores morais vindos de sua etnia ibo.

A corrupção marca o livro desde sua abertura, com o julgamento de Obi Okonkwo, acusado de suborno. Se este conflito o deixa em crise com sua nova identidade, ele se vê também preterido de seu povo ao anunciar o casamento com uma jovem pertencente a uma etnia considerada intocável por sua família. Essa mescla de relações modernas e pré-industriais, de cristianismo e religiões animistas, de ética das convenções e valores milenares, tudo isso ganha tradução no estilo, marcado sempre pela presença do maravilhoso.

Saga do desenraizamento, mergulho na alma de um homem partido, A paz dura pouco não diz apenas de Obi Okonkwo e seu continente, como o signo de um fracasso. Chinua Achebe parece enxergar longe e lança uma pergunta ao futuro: como viver num mundo que não nos diz respeito? 

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