quinta-feira, 11 de abril de 2013

Pasquale Cipro Neto

folha de são paulo

'Haja o que hajar'
A falta de contextualização é um problema. Um pouco de leveza na alma talvez bastasse para entender a brincadeira
Estava num cantinho de uma das "capas" de ontem do UOL: "Mulher usa fama de tatuagem para vender camisetas". Lá fui eu ver do que se tratava. Dei o clique e abriu-se a página em que estava a matéria, agora com o seguinte título: "Mulher que tatuou Haja o que hajar' usa fama na internet para vender tatuagens".
Contradição à parte (na capa do site, a "fama" era da tatuagem; na matéria, a fama é da mulher tatuada), a história é um tanto interessante e mostra bem o que podem ocorrer nas tais "redes sociais", que, como se sabe, são, quase sempre, terra de ninguém e espaço para o mais inútil besteirol.
Diz a matéria: "A frase, atribuída a um ex-presidente do clube (Corinthians), aparecia tatuada nas costas de Lidiane de Sousa, 30, e virou motivo de piada pelo erro de português. Mesmo chateada com os comentários maldosos sobre a tattoo, feita em homenagem ao marido, Lidiane está aproveitando o sucesso na internet para vender camisetas (...). A moradora de Goiânia diz que fez a tatuagem, ciente do erro de português, em"¦".
Lidiane se queixa de vários comentários maldosos e de frases irônicas postadas aqui e ali ("Parabéns, tá serto"; "Antes de virar um tatuador, vou estudar").
A falta de contextualização é sempre um problema. Não morro de amores por tatuagens e, ainda que as adorasse tresloucadamente, dificilmente eu me tatuaria com uma frase como a que está em questão, mas... Mas um pouco de leveza na alma e no espírito talvez bastasse para entender a brincadeira ou (sonho dos sonhos) entender que há coisas mais importantes na vida do que perder tempo com a "correção" de coisas do gênero.
O episódio me lembra o "Me inclua fora dessa", que volta e meia emprego neste espaço. É batata! Não saio "ileso" nenhuma vez. Sempre há leitores que me "corrigem" (os mais delicados)"¦ Haja dureza na alma!
Gosto --duvidoso, duvidosíssimo-- à parte (refiro-me a qualquer tatuagem), o fato é que é mais do que evidente que a construção em tela não pertence ao padrão culto da língua, em que se empregaria a forma "houver" ("Haja o que houver"), do futuro do subjuntivo do irregularíssimo verbo "haver".
Na verdade, se pensarmos que a frase da tatuagem leva em conta um suposto verbo "hajar", deveremos imaginar que ela apresenta uma anomalia na forma "haja", já que, se existisse o verbo "hajar", a forma "haja" daria lugar a "haje" (verbos que terminam em "ar" fazem o presente do subjuntivo em "e", certo?).
Lembra aquela genial canção "Inútil", dos meninos do grupo Ultraje a Rigor? Em vez de entender o tom irônico e mordaz presente no "erro" de concordância ("A gente somos inútil"), que deveria necessariamente ser contextualizado, muita gente"¦ Bem, não preciso continuar, preciso?
Lembrei-me ainda de outro caso do folclore da língua e do futebol ("Fiz que fui e acabei fondo" --a frase é atribuída a mais de um ex-jogador de futebol). Talvez alguém tenha realmente dito isso, mas o fato é que, hoje, se alguém quiser brincar e usar a construção, a patrulha da descontextualização atirará paus e pedras.
Enquanto isso, dia sim, dia também, pipocam brilhantes "reflexões" do pastor, digo, deputado federal Marco Feliciano (presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias!!!). A última de que tomei conhecimento diz respeito ao sucesso de Caetano Veloso com a gravação da canção "Sozinho", composta por Peninha. É de doer! Não é por acaso que o Brasil vai mal, muito mal, em todas as avaliações internacionais de capacidade de leitura, compreensão de textos etc. É isso.

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