terça-feira, 28 de maio de 2013

MARIA ESTHER MACIEL » Era uma vez, o Oriente‏

Um dia, recebeu da imperatriz algumas folhas de papel e pôs-se a escrever 


Estado de Minas: 28/05/2013 

Descobri a escritora japonesa Sei Shonagon num belo ensaio de Octavio Paz, intitulado Três momentos da literatura japonesa. Até então, nunca ouvira falar dela e de sua vida. Nem sequer imaginava que, no século 10, no outro lado do mundo, pudesse ter existido uma mulher que mais parecia do século 20, tal a modernidade de seus textos, a ousadia de seu modo de vida e a lucidez crítica de seu pensamento.

Na ocasião, início dos anos 1990, procurei coisas dela para ler, sem êxito. Não havia nada disponível por aqui. Alguns anos depois, porém, reencontrei a escritora no impactante filme de Peter Greenaway O livro de cabeceira, e fiquei mais uma vez seduzida por sua figura ímpar. Acabei, assim, encomendando uma edição em inglês do livro que ela escreveu e, só ao recebê-lo, comecei a entender melhor o fascínio exercido por essa escritora sobre autores tão diferentes como Paz e Greenaway. Fascínio, aliás, que – como soube mais tarde – também contagiou Jorge Luis Borges, visto que ele traduziu – junto com Maria Kodama – algumas partes do livro para o espanhol.

Shonagon viveu na cidade hoje conhecida como Kyoto. Culta, refinada, observadora e atenta às sutilezas do mundo, ela foi dama da corte da dinastia Heian, tendo vivido num ambiente social que valorizava a arte, a poesia e a caligrafia. Um dia, recebeu da imperatriz algumas folhas de papel e pôs-se a escrever – em horas de ócio e descontração – o que veio a se chamar de O livro do travesseiro. Isso porque era guardado dentro daqueles travesseiros japoneses de madeira.

Se trato desse tema aqui hoje é porque recebi, há poucos dias, um exemplar da recente tradução brasileira do livro de Shonagon, feita por um grupo de professoras do Centro de Estudos Japoneses da USP e publicada pela Editora 34. Uma preciosidade. Além da cuidadosa tradução feita diretamente do japonês, o volume traz várias notas explicativas, glossários e estudos críticos minuciosos. Um trabalho de fôlego, ao qual a equipe se dedicou por 11 anos.

Ler O livro do travesseiro é fazer uma deliciosa viagem aos costumes do Japão tradicional, além de uma experiência poética única. Ele nos leva a um mundo que, apesar de longínquo, entra pelos nossos poros e sentidos. É uma espécie de diário lírico e irônico da vida na corte, cheio de listas, anotações esparsas sobre a natureza, poemas, comentários (por vezes maliciosos) sobre pessoas, registros de encontros amorosos e observações sobre o cotidiano. Mas o melhor do livro, a meu ver, são as listas: listas de coisas que dão prazer, coisas que aborrecem, coisas que fazem palpitar o coração, coisas passadas que nos provocam saudade, coisas raras, coisas maravilhosas, coisas requintadas, coisas que afligem, coisas que nada têm em comum, que causam intranquilidade, tédio ou inveja, coisas que nos confortam ou nos aterrorizam, entre várias outras. As críticas feitas por Shonagon aos homens medíocres também são interessantíssimas. Ela era uma sedutora, mas só se encantava com homens elegantes, cultos e inteligentes. E não deixava de lamentar a condição submissa das mulheres do seu tempo.

É uma delícia ler O livro do travesseiro de forma descontínua, abrindo-o ao acaso. Cada página é uma surpresa. Não à toa, tornou-se um dos meus livros de cabeceira.

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