quinta-feira, 30 de maio de 2013

MARINA COLASANTI » Quanto pode um chinês louco‏

Casa vazia, pus minha comida numa bandeja, enchi a taça de vinho, subi, liguei a televisão 


Estado de Minas: 30/05/2013 


Semana passada, escrevi uma crônica áspera, de sangue, ritual e barbárie. Textos assim me doem. Acabei tarde, cerca de 22h, sem ter jantado ainda. Casa vazia, pus minha comida numa bandeja, enchi a taça de vinho, subi, liguei a televisão no canal Arte1. E como quem toma – tomava – um bonde em andamento, agarrei uma alça da música que me ofereciam, e embarquei no concerto.

Que concerto fosse, eu não sabia, tampouco sabia que peça era aquela que já ia ao meio. O maestro, sim, soube logo, Zubin Mehta. Ao ar livre, entardecer. E um palácio ao fundo, imenso, dourado na luz ainda natural e já da iluminação, com duas alas laterais que acolhiam em abraço o palco da orquestra e a plateia de tantíssimas cadeiras enfileiradas. Lá atrás, num promontório, ainda se via um palácio pequeno, quase um templo, com que a perspectiva coroava o maior.

Tudo era ritual. Os punhos cândidos e engomados do flautista, a inclinação contida do músico sobre seus tambores, a cabeleira do spalla, a aliança ou o olhar entregues em plena intimidade pela câmera, formavam um todo com os gestos do maestro, o estilhaçar das luzes no toldo transparente, e até com as roupas aleatórias e coloridas da plateia. Como naqueles quebra-cabeças com cenas recortadas, cada peça se encaixava em outra, armando o grande conjunto. Eu também, sentada no sofá da minha casa, em outro país e outro continente, tomando sopa, me senti levada pela admiração e pela música, e encontrei o meu encaixe.

“Temos aqui um chinês louco!”, disse Zubin Metha num intervalo, abraçando o solista e caminhando com ele pelo palco ”Hoje só tocamos desse jeito porque ele quis.” O chinês era mais que louco, era atacado, possuído, delirante de notas. Ao piano, Lang Lang parecia desprender-se do chão e da banqueta em certas passagens e em outras girava os olhos enormes ao redor ou buscava o maestro, não como se precisasse de guia, mas como se, passeando por um parque, se encantasse com a paisagem.

Aos poucos o entardecer retirou-se, certamente empurrado para fora de cena pela noite, que também queria ouvir. O palco pareceu ainda mais luminoso, talvez não tanto pela luz quanto pela vibração da música. Tocou-se a 5ª Sinfonia de Beethoven e os quatro toques da morte que chega, ou do deslumbramento que se anuncia, botaram de joelhos a alma do público. O chinês louco tocou Liszt e tocou Chopin, e me perguntava que caminhos seguiu sua sensibilidade oriental de tradição musical tão contida, tão... busco a palavra e sem me atrever a usá-la no seu sentido musical a tomo emprestada da literatura… tão minimalista, para se apossar do desbordamento delirante desses dois românticos.

É provável que o programa, escolhido para agradar a qualquer público médio – sim, porque também houve Strauss e outro autor alemão cujo nome me escapou –, deixasse apáticos apreciadores mais sofisticados. A plateia, como esperado, delirava ao final, aos gritos de “bravo”! Para mim, que sou média em tantas coisas, mas me alimento dos detalhes, foi uma festa na casa vazia, um jantar nobre servido no meu colo. Penitencio-me por ter me distraído perdendo o nome da orquestra sinfônica, mas, além da execução, chamou-me a atenção o fato de serem só homens, nenhum oriental, nenhum étnico. E isso, hoje, é muito exótico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário